sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A crise de gestão no estado de São Paulo


21/01/2015

A parceria entre grupos de mídia e governo do estado de São Paulo criou uma miragem que está se esfumaçando com a crise da água: a de que o estado foi bem gerido nos últimos vinte anos.
A enorme blindagem proporcionada, a necessidade de apresentar um contraponto positivo ao governo federal, tornaram o período Alckmin-Serra-Alckmin o mais medíocre da história moderna de São Paulo.
Quase todos os governantes paulistas deixaram marcas na história do Estado, de Paulo Egydio a Franco Montoro, de Orestes Quércia a Mário Covas. Do período Alckmin-Serra, ficam as lembranças de um desmonte geral na administração pública e da mediocridade absoluta, da incapacidade de gerar uma ideia inovadora.
O que se viu foi a anti-gestão, a inércia imperando em todos os níveis administrativos, governantes sem capacidade de decisão até para enfrentar problemas inevitáveis.
***
Em 2003, a Grande São Paulo atravessou uma crise de água e os estudos da época já apontavam que, sem novos investimentos, a capacidade de fornecimento de água da Sabesp só bastaria até 2010.
Nada foi feito. A Sabesp serviu apenas como trampolim para operadores do partido, como esse inacreditável Gesner de Oliveira.
***
A gestão José Serra foi marcada pela fuga permanente no enfrentamento dos problemas.
Serra foi o principal responsável pela grande enchente de 2008, ao cortar as verbas do Estado destinadas ao desassoreamento do rio Tietê. Quando sobreveio o desastre, escondeu-se da população, não apareceu em público, sequer para coordenar a defesa civil.
Na greve da Polícia Militar escondeu-se no Palácio dos Bandeirantes, recusando-se a negociar. Quando o pau comeu, cedeu depressa, inclusive com concessões na área de aposentadoria que comprometeram as contas públicas futuras do estado.
Na grande crise econômica de 2008, para ser recebido pelo governador, industriais do setor de máquinas e equipamentos ameaçaram se juntar aos trabalhadores para um piquete na porta do Palácio. E não se viu uma estratégia sequer anticíclica. Pelo contrário. Em um momento de crise profunda, Serra implementou a substituição tributária, pressionando ainda mais as empresas e liquidando com as isenções da Lei do Simples.
***
Ao final da sua gestão, Serra deixou em crise a Universidade de São Paulo, o Instituto Agronômico, o Memorial da América Latina, o Museu do Ipiranga, o Instituto Butantã, a própria Sabesp, a Fundação Padre Anchieta e o sistema cultural do estado – todos aparelhados por apaniguados ou abandonados à sua sorte, no melhor estilo que o PSDB critica no PT.
***
De seu lado, Alckmin assistiu inerte São Paulo caminhar para a potencialmente mais letal crise da sua história: a expectativa de falta d’água generalizada nos próximos meses..
Tendo especialistas de alto nível na Poli ou mesmo no campo federal, levou dois anos para convoca-los e começar a enfrentar a crise.
***
No plano federal, o primeiro governo Dilma fez-se merecedor da enxurrada da críticas que se abateu sobre seu voluntarismo.
Se a régua que a mede fosse usada para o governo de São Paulo, Dilma se tornaria uma Margareth Thatcher.
Lá e cá, em Brasilia e em São Paulo, há uma enorme escassez de estadistas ou, no mínimo, de gestores.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Somos todos o quê?

Saul Leblon na Carta Maior, 12/01/15


O emblema totalizante, ‘somos todos Charlie’ teve curta unanimidade no ambiente trincado de uma Europa onde, de fato, não há lugar para todos serem a mesma coisa em parte alguma.

Os números da exclusão em marcha no continente são suficientes para esfarelar essas ‘uniões’ nascidas da emoção da tragédia,  como é o caso, mas que historicamente se mostram insuficientes para regenerar as partes de um  todo que já não se encaixava mais.

Como recompor o cristal da liberdade, da igualdade e da fraternidade, diante de uma Europa unificada pela lógica do  mal estar social?

Com políticas pública que hoje  irradiam chantagem, regressão , niilismo, intolerância  e medo diante do futuro rarefeito?

 Somos todos o quê?

É justo perguntar quando o Estado a serviço dos mercados  mastigou  todas as pontes para a construção de uma cidadania convergente e soberana.

A polêmica linha de humor do ‘Charlie Hebdo’  deve seu sucesso, em grande parte, justamente   à acentuação dessa rachadura em uma  chave religiosa.

Deve-se respeitar a sua liberdade. Mas a forma como escolheu exerce-la fez do jornal parte do estilhaçamento  que procurava  criticar;  tornou-se assim mais um referido do que  referência.

A Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papeis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados.

Após seis anos de arrocho neoliberal, o desemprego e o esfarelamento do padrão de vida dos trabalhadores e da classe média –condensado em uma geração de jovens que dificilmente repetirá  a faixa de renda dos pais, turbinou a rejeição ao estrangeiro, criou o medo da  'islamização da sociedade', alimentou a extrema direita e liberou  a demência terrorista.

Não necessariamente nessa ordem, mas com essa octanagem abrangente.

 A imponente marcha em Paris neste domingo não escapou do liquidificador de nitroglicerina.

Seria irônico , não fosse trágico.

Na  comissão de frente da principal coluna da manifestação, que reuniu um milhão de pessoas,  ao lado do presidente François Hollande , e de Merkel, lá estava Benjamin Netanyahu. 

Sim,  o premiê de Israel.

Ele que  acaba de se aliar à extrema direita para transformar o Estado israelense em um estado religioso.

Responsável por alguns dos mais impiedosos massacres do século XXI, contra populações civis encurraladas por Israel  na  Faixa de  Gaza, a presença de Netanyahu a engrossar o  ‘somos todos Charlie’ convida a pensar sobre o alcance das unanimidades.

É  um silogismo barato afirmar  que a recusa  ao bordão dominante endossa o abismo ensandecido  do terrorismo.

Num texto de 1911, ‘Porque os marxistas se opõem ao terrorismo individual’,  e quando ainda nem desconfiava que ele próprio seria uma vítima futura, León Trostsky  criticou exemplarmente aquilo que, nas suas palavras, ‘mesmo que obtenha "êxito" (e) crie confusão na classe dominante (...)  terá vida curta; o estado capitalista não é eliminado; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento. Todavia, a desordem que  um atentado terrorista produz  nas fileiras da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Se um pouco de pólvora e um pedaço de chumbo bastam para perfurar a cabeça de um inimigo, que necessidade há de organizar a classe? Se tem sentido aterrorizar os altos funcionários com o ruído das explosões, que necessidade há de um partido?’, criticava o líder da Revolução de Outubro, banido e assassinado por Stálin, para concluir em seguida: ‘Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência e (desvia)  seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador, que algum dia virá cumprir sua missão’.

Cento e quatro anos depois, o alerta ganha atualidade diante das medidas cogitadas após o massacre em Paris.

Os indefectíveis Le Pen, pai e filha, pedem, nada menos que a restauração da pena de morte, abolida em 1981.

A nostalgia da guilhotina é  só o primeiro degrau do patíbulo.

O endurecimento contra os imigrantes, na verdade,  já avançava em marcha batida antes do massacre da quarta-feira (07/01) .

Agora, porém, que  ‘somos todos Charlie’, quem irá detê-lo –se até Netanyahu  aderiu?

Ofuscados habilmente pelo ‘consenso’, os antecedentes da tormenta esticam o elástico de uma gigantesca armadilha histórica.

Desemprego com deflação e captura do Estado e da política pela alta finança.

 É disso que se trata a tragédia europeia, vista de corpo inteiro.

A zona do euro enfrenta deflação recessiva; a Itália tem desemprego recorde; Alemanha e França assistem a uma espiral de xenófobia; Grécia tem 59% da juventude fora do mercado; Portugal tem 500 mil desempregados e Espanha devastou sua rede de proteção social.

Assim por diante.

Foi preciso que um economista moderado, Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística  do avanço rentista sobre a riqueza da sociedade para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço –fugaz—  no debate econômico e midiático sobre a crise europeia.

E mesmo assim colateral às decisões da troika, que estala o relho no lombo da cidadania e exige ordem unida ao abismo.

É sobre essa base de rigidez que a  alavanca da tragédia move o curso da história. 
Não Maomé, não Charlie Hebdo, não a juventude niilista.

Não os  filhos de imigrantes pobres , que se convertem  cada vez mais ao islamismo como ponto de fuga à meia cidadania da desordem neoliberal  que nada tem a lhes propor hoje.

E  não o fará amanhã também.

Entregue aos ajustes fiscais, na ressaca dos mercados após o fastígio neoliberal, a Europa é hoje um museu de lembranças do acolhimento humanitário e político, que a transformaria em legenda da civilização e da fraternidade.

Na Itália, sob o afável Berlusconi, o Estado elevou para seis meses o tempo que imigrantes ilegais podem ser detidos em ‘ centros especiais’ e autorizou a criação de falanges civis para “ajudar a polícia a combater o crime nas ruas”.


Na Grécia, onde as taxas de desemprego triplicaram sob o chicote de Frau Merkel, os integrantes do partido Aurora Dourada sequer dissimulam a inspiração nazista: sua faxina étnica avança contra árabes, africanos, ambulantes, ciganos e homossexuais.

‘Somos todos Charlie’?

As notícias contraditórias que chegam dos EUA, surfando em uma recuperação feita de empregos com salários aviltados, e da Europa sem Estado à altura para reagir, evidenciam a profundidade de uma desordem  que não cederá tão cedo, nem tão facilmente.

A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental para renovar a ação política em nosso tempo.

Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço pelos interditos neoliberais, alargaram os vertedouros ao espraiamento de uma dominância financeira que  agora produz  manifestações mórbidas em todas as esferas da vida.

Quando a economia se avoca  um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência endógena, avessa ao ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania plena, o que sobra à democracia?

A pauta dos mercados autorregulados revelou-se uma fraude.

Gigantesca.

Era o  fim da história, replicava o colunismo áulico.

Não era, mostrou setembro de 2008.

Pior que isso.

O sete de janeiro francês avisa que se a sociedade continuar apartada do seu destino, os próximos capítulos serão dramáticos.

No Brasil, os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008, retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos  insustentáveis.

E eles terão que ser pagos agora.

Na forma de um afogamento incondicional.

Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada em 2008 em uma talagada única.

Não há alternativa, diria Margareth Tatcher.

As escolhas intrínsecas a uma repactuação do desenvolvimento brasileiro, de fato, não são singelas.

Nada que se harmonize do dia para a noite.

Por isso, o crucial é erguer linhas de passagem, repactuar  metas,  ganhos, perdas, salvaguardas e prazos.

Mas há um requisito para isso: tirar a economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la ao debate democrático do qual participem todas as forças sociais.

Quando a mídia conservadora tenta tropicalizar  o bordão ‘somos todos Charlie’, seu objetivo mal disfarçado vai no sentido oposto.

Tenta-se  reduzir uma  tragédia ciclópica a um atentado à liberdade de expressão.

E de forma rudimentar desdobrar a comoção aqui em um veto ao projeto de regulação da mídia brasileira.

Para quê? Justamente para interditar o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento do país.

O apego da emissão conservadora à liberdade de expressão, como se sabe, é relativo.

No dia seguinte ao massacre em Paris, a Folha de São Paulo, por exemplo, dedicou 256 palavras,  uma nota de rodapé,  para tratar do caso do blogueiro saudita, Raif Baddawi.

Baddawi dirigia o fórum on-line ‘Liberais Sauditas Livres’;  foi condenado por isso a dez anos de prisão e  multa de US$ 260 mil.

Seu caso é uma referência do padrão de justiça que impera na democrática sociedade saudita, principal aliada dos EUA no mundo árabe, onde mulheres não podem dirigir sequer automóveis  e inexiste judiciário independente da vontade dos mandatários.

Além de dez anos de prisão, Baddawi também será punido com mil chibatadas por "insultar o Islã" – 50 por semana, durante 20 semanas.

A primeira cota foi aplicada na última 6ª feira.

Uma nota com 256 palavras foi tudo o que o liberal Baddawi obteve de um dos principais veículos de informação do país.

Compare-se com as cataratas de tinta, imagem e som dedicadas à blogueira  cubana Yoani Sánchez que, livre, leve e solta, viajando pelo mundo, mereceu da mesma Folha de SP mais de 90 mil  citações; 155 mil no Globo e 110 mil no Estadão.

É difícil imaginar algo do tipo ‘somos todos Baddawi’ alastrando-se pelo colunismo pátrio que dispensou às visitas de Yoani um tratamento de chefe de Estado.

São dois pesos e mil chibatadas.

Uma diferença sugestiva.

Que recomenda cautela com as unanimidades produzidas pela mesma fonte.

Aqui ou em Paris.

O atentado ao "Charlie Hebdo" foi um filme mal produzido?

Wilson Roberto Vieira Ferreira 

Como em todos eventos agudos que envolvem a interminável “guerra contra o terrorismo”, muitos analistas apontam inconsistências, ambiguidades e lacunas na cobertura midiática ao atentado contra o jornal "Charlie Hebdo" em Paris.  São tantas que parece que estamos diante de um roteiro de um filme mal produzido: uma ação militar profissionalmente cirúrgica feita por jovens que esquecem um cartão de identidade no carro da fuga. Coincidências e conveniências para muitos lados (e até para a grande mídia brasileira) envolvem a chacina dos jornalistas e cartunistas franceses, gerando uma espiral de especulações e conspirações. Será que alcançamos o estágio mais avançado do terrorismo, o “meta-terrorismo”? O relato midiaticamente ambíguo de um atentado pode se tornar tão letal quanto o próprio atentado.

Como diria a personagem Church Lady (feita pelo comediante Dana Carvey no programa Saturday Night Live, sempre preocupada com as conspirações satânicas por trás das coincidências): “How Con-VEEN-ient!” (“Tão conVEEEniente!”).

Numa primeira análise, o ataque terrorista (alguns afirmam que foi na verdade uma ação militar pela precisão) ao jornal satírico francês Charlie Hebdo em Paris, que vitimou 12 pessoas entre eles cartunistas, editores e colunistas do veículo francês, tem se revelado bem conveniente para três personagens do atual cenário internacional e, de quebra, para o senso de oportunismo da grande mídia brasileira:



(a) Para o politicamente desgastado presidente da França François Hollande – 85% dos franceses declaram que Hollande não deveria se candidatar à reeleição e 50% o acusam de não cumprir promessas da campanha, segundo o Instituto Francês de Opinião Pública. Com a economia estagnada e falando para a mídia em “pacto de responsabilidade” onde cada um teria sua cota de sacrifício (aumento de taxação e redução dos custos dos trabalhos), Hollande  acenava com “união” para uma “França forte”. Medo e infelicidade são importantes ingredientes para a unificação diante de um suposto inimigo externo. O 11 de setembro nos EUA provou isso.

(b) Para o fascismo europeu – com dezenas de milhares indo às ruas das capitais europeias desde o ano passado no movimento chamado Pegida (sigla em alemão para Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente), isso sem falar no crescimento eleitoral da extrema-direita de Marine Le-Pen na França, o atentado dá forças à xenofobia alimentada pela crise econômica continental. O atentado cairia midiaticamente como uma luva pois representaria um ataque àquilo que supostamente distinguiria o Ocidente do “obscurantismo” islâmico: a liberdade de expressão.

(c)  Para os EUA – Enquanto em Paris os supostos terroristas faziam uma chacina na redação do Charlie Hebdo, um carro bomba explodia em frente à Academia de Polícia no centro de Saná, capital do Iêmen, resultando em 37 mortos. Informou-se que o braço jihadista da Al-Qaeda do Iêmen reivindicou a autoria. Quase ao mesmo tempo em Paris, os terroristas encapuçados gritavam na rua para todos que pudessem ouvir: “Digam para a imprensa que somos da rede Al-Qaeda do Iêmen”.

Por que agora o Iêmen? O que agora o mundo (ou os EUA) querem com esse país pobre fronteiriço da Arábia Saudita? Leia esse trecho do documento “A Agenda Secreta do Iêmen: por trás dos cenários da Al-Qaeda, o gargalo estratégico do petróleo” de 2010 do Centre of Research on Globalization (CRG): 
“A importância estratégica da região entre o Iêmen e a Somália torna o ponto de interesse geopolítico. Lá está o estreito de  Bab el-Mandeb, um dos sete pontos que os EUA consideram gargalos para o transporte de petróleo – um gargalo entre o cabo da África e Oriente Médio, e uma ligação estratégica entre o Mar do Mediterrâneo e o Oceano Índico”.

O impactante atentado de uma suposta ramificação da Al-Qaeda no Iêmen seria um pretexto perfeito para a militarização da águas em torno de Bab el-Mandeb pelos EUA ou OTAN. Os EUA buscam o controle desses gargalos críticos no mundo. Essa região seria estratégica em um futuro próximo pela possibilidade de controle do petróleo para a China, União Europeia ou qualquer região que se oponha à política norte-americana.

(d)  Para a grande mídia brasileira – diante do fantasma da regulamentação midiática através da possibilidade da implementação Lei dos Meios, oportunisticamente colunistas brasileiros dão o ponta pé inicial na transformação do atentado em combustível para sua agenda. Diogo Mainardi e Felipe Moura Brasil, por exemplo, tentam associar a tragédia de Paris a uma onda ofensiva contra a liberdade de imprensa do qual faria parte “os ataques petistas”.
                    
               E ainda, a inacreditável "jornalista" Rachel Sherazade, em comentário na Rádio Jovem Pan, comparou a revista Veja ao Charlie Hebdo. Para ela, o veículo estaria sendo vítima não do radicalismo islâmico, mas do "radicalismo de esquerda".

Um filme mal produzido?


           O historiador norte-americano Daniel Boorstin, talvez o primeiro pesquisador a compreender o papel da simulação como elemento dominante da cultura, chamou a atenção da “era do artifício” atual onde a vida pública estaria sendo dominada pelos “pseudo-eventos”: fatos deliberadamente planejados e roteirizados para serem “noticiáveis”, ganhando a atenção da opinião pública – e isso Boorstin escreveu em 1963 no seu livro The Image – a guide of pseudo-events in America.

Para Boorstin, um dos critérios para podermos diferenciar um pseudo-evento de um “evento produzido por Deus” é a sua “ambiguidade” em relação à realidade subjacente. Enquanto diante de um evento real (terremotos, enchentes, desastres aéreos) o interesse está em saber o que aconteceu e as consequências, no pseudo-evento há uma ambiguidade presente através de inconsistências, detalhes inverossímeis e conveniências ou coincidências que tornam o evento noticiável. O pseudo-evento obedece o timing dos ritmo midiático da transmissão das notícias.

Somado ao timing e conveniência a múltiplos interesses que o atentado veio aparentemente de forma involuntária atender, acrescenta-se uma narrativa com diversas ambiguidades. Um roteirista de cinema experiente condenaria a produção como um filme mal produzido. Vamos analisar sete das inúmeras ambiguidades que analistas e teóricos da conspiração estão discutindo:

(a) Apesar da proximidade do Centro de Paris, as ruas próximas ao atentado estavam vazias. O  atentado ocorreu  no primeiro dia dos “Soldes” (temporada de liquidação de inverno dos saldos do Natal que ocorre de 7 a 17 de fevereiro), caracterizado pelo frenesi de turistas, grande movimentação de carros. O Citroën dos terroristas estava parado no meio da rua. Particularmente nesses dias de “Soldes” você não consegue ficar parado sem, em questão de segundos, formar-se uma fila de carros;

(b) A suposta execução de um policial numa calçada de concreto foi um ato arriscado para o terrorista: ninguém atira numa superfície de concreto, a não ser que queira ser morto por um ricochete;

(c) Problemas com o “figurino” dos policiais: intrigante é que os policiais anti-terroristas não estavam com capacetes e máscaras. Aparecem no vídeo com boné e roupa casual;

(d) O ponto positivo cinemático é o bom efeito de realidade conseguido com a imagem da execução do policial ferido e indefeso caído na calçada. Apesar do fator inverossimilhança (o ricochete da bala), o roteirista deve ter achado necessário inserir uma imagem de execução, já que as imagens liberadas para as redes de TV do mundo seriam muito “frias” – apesar das informações de 20 vítimas (mortos e feridos) simplesmente não vemos urgência: apenas duas ambulâncias e a foto de uma pessoa ferida. Não há declaração de testemunhas oculares.

A imagem da execução do policial consegue dar uma amostra da suposta crueldade e frieza dos terroristas que invadiram uma redação para matar um por um por chamada através do nome de cada vítima. Comparado com as imagens do atentado de 11 de setembro em Nova York, lá houve mais esmero na produção: um grande número de “extras” correndo em pânico pelas ruas e imagens apocalípticas de urgência ;

(e) A narrativa é extremamente conveniente para as autoridades: policiais encontram um documento de identificação de um dos terroristas no Citroën abandonado ruas acima. Mas com que diabos, por que terroristas do braço iemenista da Al-Qaeda andam com documentos de identidade?

(f) O suposto “atentado terrorista” foi, na verdade, uma “cirúrgica” ação militar metodicamente planejada contra vítimas pré-selecionadas. Foram treinados militarmente, o que, pela logística de assalto demonstrada (proteção em “ala” – quem não dispara “gira”, fechando a saída do alvo – deslocam-se para o veículo de fuga sem correr, atiraram bem com fuzis sem extensão de ombro e apoio axilar), não se encaixam com o perfil que a mídia agora começa a fazer dos jovens – o mais novo dos irmão Kouachi era fã de rap (vídeo dele em shows agora são exibidos), “um aprendiz de perdedor” como declarou seu antigo advogado Vincent Ollivier, limítrofes sociais que viviam de bicos em pizzarias e peixarias.

Surgem informações que ficaram alguns meses no Iêmen sendo treinados (sim! sempre Iêmen), o que lembra o script do atentado de 11 de setembro – os terroristas que jogaram o Boeing 747 contra o WTC teriam feito um curso em um Aeroclube na Flórida...

             Uma ação militar precisa com o modus operandi de mercenários ou profissionais a serviço da CIA ou Mossadi levada a cabo por jovens que esquecem o cartão de identidade no carro da fuga... o que lembra o erro crasso de todo roteiro mal feito, chamado pelos roteirista de “Deus ex-machina” – termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa para solucionar becos sem saída em roteiros mal conduzidos.

(g) Embora caricato e canastrão, o roteiro segue o padrão “sujos, feios e malvados” para caracterizar os protagonistas: a aproximação metonímica entre rap, muçulmanos e armas russas (nas primeiras informações da grande mídia destacava-se que os terroristas teriam utilizado “armas russas”). Por isso, os protagonistas se encaixam no padrão RAV hollywoodiano: Russos, Árabes e Vilões em geral. Se o episódio fosse no Brasil, o perfil dos terroristas certamente seria o de funqueiros.

Teorias Conspiratórias


Todas essas ambiguidades estão ajudando a turbinar duas principais teorias conspiratórias: o “Trabalho Interno” (Inside Job – governos estimulam ou permitem determinada ação do inimigo pela conveniência das consequências - algo como foi o ataque de Pearl Harbor para os EUA na II Guerra Mundial) e a teoria da “Falsa Bandeira” (False Flag – operação conduzida por governo, corporação ou organização que simula serem ações do inimigo para tirar proveito das consequências resultantes):

(a) Foi um “Trabalho Interno” – os supostos terroristas sabiam quando e como atacar a sede do Charlie Hebdo. Todos foram assassinados juntos, em uma reunião de pauta do jornal. Os funcionários mais importantes do veículo estavam lá reunidos naquele momento. Os “terroristas” lidaram com a situação como profissionais, o que contraria a prática até aqui do terrorismo – destruição e mortes em larga escala para produzir pânico e repercussão midiática. Foi um assassinato. Os teóricos dessa linha se perguntam: como os terroristas sabiam que os mais importantes nomes do Charlie Hebdo estariam lá, reunidos naquele momento?

(b) Foi uma “Falsa Bandeira”- a equipe do jornal estava sob sistemática proteção policial desde 2013 e o editor Stephanie Charbonnier (Charb) estava numa hipotética lista negra da Al-Qaeda. Como, então, foi possível uma ação metodicamente planejada? Os teóricos dessa linha levantam a questão de que no vídeo não há tráfego visível no centro de Paris. Onde foram parar as armas da ação e para onde foram as balas da execução do policial? Ao explorar a teoria da Falsa Bandeira é impossível não trazer à tona a ação de mercenários contratados por agência como CIA ou Mossad. Alguns mais radicais falam de simulação cenográfica pura e simples, assim como teria ocorrido no atentado à Maratona de Boston em 2013.

Hipóteses finais


A narrativa informada pela grande mídia sobre o atentado ao Charlie Hebdo está tão carregada de lacunas, ambiguidades e inverossimilhanças que podem resultar em duas hipóteses:

(a) Estamos diante de mais uma peça de propaganda dominada pela canastrice dos atuais dispositivos de propaganda: vídeos e mensagens excessivamente saturadas, over, melodramáticos (imagine a cena da funcionaria chegando com sua filha pequena e coagida pelos terroristas armados a digitar o código que abria a porta do jornal) e com “appeal” ou “look” semelhante às produções medianas de Hollywood. Hipótese comprovada pela estereotipagem RAV dos supostos terroristas.


(b) Hipótese ainda mais sinistra: as ambiguidades e lacunas foram propositalmente deixadas na produção. Desde os estudos feitos por Gordon Allport e Leo Postman em 1947 (leia A Psicología del Rumor, Psique, 1988), o fator ambiguidade é considerado o fator mais importante na transformação de uma informação em boato ou meme. A dúvida entre a realidade e a mentira dá ainda mais alcance à notícia, produzindo uma espiral especulativa. Portanto, estaríamos diante de um meta-terrorismo: um terrorismo autoconsciente onde o relato midiaticamente ambíguo do atentado se torna mais uma arma letal. 

Porque eu não sou Charlie

Plínio Zúnica, no Opera Mundi 10/01/15
Nada justifica o massacre na redação do jornal Charlie Hebdo, mas algumas generalizações e relativizações na cabeça da sociedade são tão perigosas quanto kalashnikovs na mão de fundamentalistas.

O caso Charlie Hebdo levantou grandes discussões. Há políticos, instituições, governos, jornalistas e comentaristas de Facebook de todas as estirpes falando sobre o assunto em tribunas, periódicos e mesas de bar. Todos são unânimes em condenar a brutalidade dos ataques, porém as divergências de opinião são maiores do que as concordâncias.

Enquanto muitos discursos falam sobre o perigo da amplificação do ódio contra comunidades muçulmanas na França e ao redor do mundo, não faltam aqueles que de pronto condenem a “selvageria e brutalidade” da religião islâmica e dos povos árabes, engrossando as fileiras de fundamentalistas nacionalistas que organizam marchas xenófobas contra a “islamização da Europa”, a favor das intervenções militares criminosas dos estados ricos do Ocidente nos países do Oriente Médio e África e respaldando o racismo que tornou possível e aceitável a longa série de políticas coloniais e práticas exploratórias que sustentaram a economia e poder da França desde que esta se tornou um Estado-Nação.

Entretanto, não quero falar agora sobre as divergências de opinião, e sim sobre o consenso, expresso no slogan “Je suis Charlie” (“Eu sou Charlie”), que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan é atrelado à ideia de que o que ocorreu ontem na França implica um atentado contra a liberdade de imprensa e valores democráticos ocidentais; implica dizer que toda imprensa é livre pra publicar irresponsavelmente qualquer conteúdo; implica dizer que o direito de zombar de uma religião é o mesmo que lutar pelo estado laico; e implica, principalmente, que o ataque foi simplesmente resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso diante de uma critica “ácida e sagaz”, excetuando-se todo o contexto de marginalização e discriminação da comunidade muçulmana na França. Principalmente, implica ignorar à que se propõe e quais os efeitos dessas charges no contexto político-ideológico de um país com níveis alarmantes de racismo.

O argumento mais comum que encontrei nas redes sociais e comentários de jornais on-line é o de que o Charlie Hebdo fazia charges ofensivas sobre todas as religiões, e que, portanto, se cristãos conseguem ver charges com Jesus e levar como uma piada, então, muçulmanos também deveriam. Esse é um argumento raso, porque coloca no mesmo patamar a situação das comunidades muçulmanas e das comunidades cristãs na Europa, ao mesmo tempo que reforça a ideia de superioridade ocidental racionalista. É o mesmo simplismo de quem diz que chamar um branco de “palmito” tem o mesmo peso de chamar um negro de “macaco”. Não é só uma piada.

A quem serve a islamofobia?

No dia anterior ao massacre de Charlie Hebdo aconteceram duas marchas na Alemanha: uma pela expulsão de árabes e muçulmanos do país e outra contra o discurso xenófobo da direita ultranacionalista alemã. Esse tipo de manifestações populares contra minorias étnicas fica cada dia mais comum em toda a Europa, e a França, sempre avant-garde, é um dos maiores focos de marchas e movimentos racistas, machistas e xenófobos na Europa.

Na França a “Questão Muçulmana” é uma obsessão prioritária dos grupos de direita. O jornalista Edwy Planel, autor do livro “Pelos Muçulmanos” (título dado em alusão ao artigo “Pelos Judeus”, escrito por Emile Zola sobre o caso Dreyfus) aponta os ataques à comunidade muçulmana como sendo a principal plataforma de discurso eleitoral na França de hoje.

Nicolas Sarkozy é um exemplo claro da presença do discurso racista na política francesa. Podemos citar seu discurso na Universidade de Dakar, em julho de 2007, quando disse:

“O drama da África é que o homem africano não entrou totalmente na história. O camponês africano, que desde milhares de anos vive conforme as estações, cujo ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras. Nesse imaginário onde tudo recomeça sempre, não há lugar nem para a aventura humana, nem para a ideia de progresso. Nesse universo onde a natureza comanda tudo, o homem escapa à inquietude da história que inquieta o homem moderno. Mas o homem permanece imóvel no meio de uma ordem imutável, onde tudo parece ser escrito antes. Nunca ele se lança em direção ao futuro. Nunca não lhe vem à ideia de sair da repetição para se inventar um destino”.

Vamos lembrar que quando fala do “homem africano” (como se todos os povos de África fossem um único grupo homogêneo) Sarkozy alude especialmente à população muçulmana, uma vez que a França invadiu e colonizou a Argélia e o Marrocos, de onde vêm a maior parte dos imigrantes islâmicos da França.

Atualmente vem ganhando muito espaço ideológico o partido de extrema direita Frente Nacional, cuja principal voz é Marine Le Pen, famosa pelo discurso islamofóbico e pelas políticas anti-imigração. Le Pen, forte candidata para as próximas eleições presidenciais, declarou hoje, no embalo do ataque de ontem, que “a França está sendo atacada”, e aproveitou para reforçar sua proposta de instaurar a pena de morte no país.

O professor Reginaldo Nasser aponta, em artigo publicado ontem, pra o perigo do uso do caso Charlie para fortalecer as políticas ultranacionalistas francesas: “Há de fato uma situação conturbada na França e que vai piorar a partir de agora, os preconceitos com os imigrantes podem aumentar e reforçar um sentimento nacionalista. Le Pen é a representante de um pensamento xenófobo no país. Mas temos que esperar ainda pra ver quais serão dos desdobramentos quando se descobrir os culpados”.

Portanto, a mobilização massiva criada em torno do slogan "Je suis Charlie", se for ausente de uma crítica séria sobre a situação dos muçulmanos na Europa e as razões da islamofobia na França, tende a ser apenas combustível para a xenofobia e os partidos ultraconservadores.
A quem serve a liberdade de expressão?

Aqueles que ostentam orgulhosos o slogan “Eu sou Charlie” se dizem advogar pela liberdade de expressão, porém não questionam o que significa essa liberdade de expressão, tampouco quem tem direito a essa liberdade. Ninguém se preocupa com a censura à liberdade de expressão religiosa islâmica na França.

Em 1989, o jornal Le Nouvel Observateur publicou uma capa contra o uso do hijab, o véu muçulmano, nas escolas. Isso levou a uma discussão que culminou na lei de 2004 proibindo que meninas islâmicas usando lenços frequentassem as aulas, e desde 2011 há uma circular do Ministério da Educação recomendando que se impeça a presença de mães usando hijabs na área em torno dos colégios. Nunca houve proibição do uso de crucifixos ou camisas com slogans cristãos. A esquerda francesa (e a maior parte da esquerda ocidental) se mostrou favorável a esta lei ou, na melhor das hipóteses, silenciou sobre ela, sob o pretexto da defesa do Estado Laico. Esquecem-se que o laicismo serve para preservar o direito à liberdade de exercício de pensamento religioso ou à liberdade de não exercer nenhuma crença religiosa. E esquecem-se de que o islã não é apenas uma crença religiosa, mas também um referencial de identidade de toda uma comunidade historicamente oprimida, remetendo à questões religiosas, culturais, étnicas e políticas.

Proibir a expressão de sua religião é censura. Proibir a expressão de sua identidade cultural é eugenia. Imaginem, por exemplo, uma lei brasileira proibindo o uso de turbantes e símbolos da Umbanda e Candomblé em áreas públicas. Seria uma conquista do estado laico ou (mais) um ataque às crenças afro-brasileiras?
Na esteira das liberdades de expressão negadas pelo governo francês intrinsecamente conectadas ao Islã está a abominação legislativa sancionada no ano passado, quando a França tornou-se o primeiro país do mundo a proibir manifestações de apoio à Palestina, durante os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza, que assassinaram 1.951 pessoas e feriram 10.193 civis. Qualquer pessoa que participasse de um protesto contra os crimes de guerra de Israel, práticas de Terrorismo de Estado respaldadas ideologicamente por políticos e formadores de opinião entre a população israelense através de fundamentalismo nacionalista e argumentos de fundamentalismo religioso judaico e islamofobia, seria preso por um ano ou pagaria multa de 15 mil euros. Se o manifestante cobrisse o rosto durante o protesto, a pena subia pra três anos de detenção.

Cabe ressaltar aqui que não sei qual foi o posicionamento do jornal Charlie Hebdo sobre esse caso em particular, mas certamente a comunidade internacional não se manifestou tão passionalmente sobre o direito dos franceses à liberdade de expressar apoio aos palestinos.

Então, cabe a pergunta:

A quem faz rir o humor de Charlie Hebdo?

Não existe piada sem um alvo, e o senso de humor tem poder político por natureza. Piadas podem ser um meio de contestação ou de sedimentação do senso comum, do status quo dominante. Quando um humorista faz uma piada racista, está endossando o racismo de quem ri, criando no riso um lugar seguro pra que os estereótipos racistas cresçam, legitimando ignorância e raiva, disfarçados de senso de humor. As pessoas formam suas concepções de mundo, de certo e errado, de verdade e justiça, muito mais através de piadas e slogans simplistas do que de resoluções da ONU e tratados de sociologia.

Lembro-me que, quando era criança, meu pai comprava livros de piadas em bancas de jornal e passava o dia atormentando minha mãe com piadas machistas sobre loiras burras e mulheres caricaturadas da pior forma possível. Eram sessões ininterruptas de ofensas, mas que ela ouvia com um sorriso amarelo, uma vez que “era só piada”. Da mesma forma, ele contava as piadas mais ofensivas possíveis sobre negros, sempre respaldadas pelo fato de que “não era o que ele pensava”, e sim “só o que estava escrito nos livros de piada”. Foram anos desse tipo de piada “inocente”, até o dia em que, sem tom de piada ou riso suave, ele me proibiu de namorar mulheres negras.

É muito comum que se veja, no Brasil, “humoristas” como Danilo Gentili e Rafinha Bastos, vindos de uma mesma escola de racismo, machismo e homofobia que geraram o riso bobo de Costinha e Renato Aragão, defenderem seu direito de ser promover discurso de ódio como se isso fosse “liberdade de expressão”. E, mais triste ainda, é muito comum ver a população brasileira defendendo essa “liberdade” de humilhar, ofender e sedimentar preconceitos contra minorias, sob o rótulo falsamente liberal (e bastante estúpido) de “politicamente incorreto”. Muitas vezes eles dizem que estão fazendo humor político, “expondo o racismo” ao fazer piadas racistas. Esse é um argumento preguiçoso e altamente hipócrita pra manter seu direito de ser um racista alegre e ainda posar de Voltaire do Facebook.

O humor das charges do jornal Charlie Hebdo está na mesma esteira de qualquer senso de humor racista. Os defensores do “Je suis Charlie” não cansam de dizer que são a revista é o Pasquim Francês. Dizem que as caricaturas são ácidas e corajosas, atacando todas as religiões e expondo a homofobia e o fundamentalismo do islã. Porém, o que as caricaturas de Mohammad fazem é respaldar o ódio e a ignorância sobre o islã, as comunidades muçulmanas francesas e os povos árabes.

Na caricatura em que o profeta Mohammad aparece beijando um cartunista branco não há contestação nem levantamento de discussão. Não é um canal de diálogo com as comunidades muçulmanas para contestar as posturas homofóbicas da religião e de suas muitas multiculturais comunidades ao redor do mundo. É apenas um desenho de um homem branco europeu beijando o símbolo máximo de uma religião pertencente a outro povo. Não é assim que se levanta um debate, não é assim que se dialoga e não é assim que se contesta. Tudo o que a caricatura faz é zombar do Islã (cuja crença considera ofensivo representar graficamente seu profeta), cortar os possíveis canais de discussão com a comunidade que criticam e aumentar os preconceitos dos franceses islamofóbicos, que assim se sentem superiores aos seus vizinhos islâmicos. Não é um discurso que contesta a homofobia das comunidades islâmicas, e sim uma agressão que contesta a legitimidade de uma comunidade marginalizada e que não dá voz essa comunidade. Esse tipo de agressão só torna mais difícil que a sociedade em geral ouça aos muçulmanos que buscam combater o discurso conservador dentro da sua religião a despeito de professarem sua fé.
Em outra caricatura, um muçulmano segura um Corão enquanto balas atravessam o livro e o seu corpo. A legenda diz “O Corão é uma merda”. Isso não levanta debate nenhum, apenas diz “sua religião é uma merda”, o que implica dizer, no caso, “sua sociedade muçulmana, sua história muçulmana, seus parentes e crenças muçulmanas, são uma merda”.

As caricaturas da Hebdo retratam muçulmanos como sendo terroristas, estúpidos e perigosos. As pessoas se acostumam a pensar nessas imagens quando pensam em muçulmanos, e isso gera medo, ódio, deboche e xenofobia. Eu, enquanto estudante de língua árabe, perdi a conta de quantas vezes ouvi tanto piadas imbecis quanto preocupações sérias de meus amigos que pensavam que eu vivia uma terra de selvagens e fundamentalistas perigosos.

Esse tipo de humor raso e infantil não é razão para que se assassinem seus perpetradores. Eu não defenderia que militantes feministas armadas invadissem o Comedians e assassinassem Rafinha Bastos. Ainda assim, elas têm todo o direito de se sentir ultrajadas, agredidas e ofendidas quando ele usa seu poder de discurso para convencer sua plateia de que mulheres feias devem ser estupradas e ficar agradecidas pela “caridade”. Mais importante, é preciso ter em mente que, sendo elas o grupo diretamente atingido pelas piadas infelizes dele, é a elas que a sociedade deve ouvir. Não me cabe o direito de julgar se uma mulher pode ou não se sentir ofendida com uma piada machista, e não me cabe dizer se um muçulmano deve se sentir ultrajado por uma piada islamofóbica, porque existe todo um contexto social por trás dessas piadas que eu não compreendo e do qual eu não sou a vítima.

Acreditar que as reações de muçulmanos às caricaturas são simples extremismo é dizer que “é só uma piada”. Não é. A reação tem a ver com todo o contexto de discriminação social e econômica, às humilhações diárias que essa população sofre nos países europeus, à invisibilidade de sua identidade, ao histórico colonial e também com as atuais politicas intervencionistas dos países ocidentais no Oriente Médio e África, que se negam a ouvir as vozes árabes e africanas enquanto financiam grupos extremistas e assassinam populações civis com drones e “democracias”.

Um relatório do Observatório Europeu do racismo e xenofobia aponta que, na França, a chance de alguém de origem árabe/muçulmana conseguir um emprego é cinco vezes menor do que um caucasiano com as mesmas qualificações. Além disso, eles possuem menos acesso à educação formal, vivem nas áreas mais sucateadas das cidades e estão sujeitos a todo tipo de descriminação e violência física. O relatório aponta o sentimento de desespero e exclusão social do jovem muçulmano, que vê sua possibilidade de progressão social dificultada por racismo e pela xenofobia.

O massacre que ocorreu na quarta-feira foi um crime horrível de terror e silenciamento, cometido por alguém que não sabemos ainda quem é (e nada impede que seja uma operação de false flag) nem com qual intenção. Um crime horrível e abominável, como foram horríveis e abomináveis os crimes de terror e silenciamento promovidos pelo Mossad quando assassinou o cartunista Naji Al-Ali, ou quando Bashar Al-Assad mandou quebrar as mãos do cartunista Ali Ferzat, ou todos os dias quando a polícia militar de Geraldo Alckmin, aterroriza e assassina os jovens que imprimem sua crítica e revolta com latas de spray nas paredes da minha cidade. Todos são crimes horríveis de silenciamento, e todos devem ser condenados, mas cada um tem suas particularidades, razões e contextos próprios e únicos, e não podemos cair no erro de diluir nossa crítica no simplismo maniqueísta, ou corremos o risco de que a voz que queremos dar à democracia seja um megafone para os absurdos da teoria de "choque de civilizações" de Huntington.

Por tudo isso, eu não sou Charlie.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

8 de janeiro de 2015 do blog "Em tom de mimimi"


Em primeiro lugar, eu condeno os atentados do dia do 7 de janeiro. Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência seja a melhor solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobramos sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem.


Após o atentado, milhares de pessoas se levantaram no mundo todo para protestar contra os atentados. Eu também fiquei assustado, e comovido, com isso tudo. Na internet, surgiu o refrão para essas manifestações: Je Suis Charlie. E aí a coisa começou a me incomodar.

A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e identificada com a esquerda pós-68. Não vou falar de toda a trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi o nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita européia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais...

O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.

Uma pausa para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de pessoas que saíram de um restaurante “com medo de atentado” só porque um árabe entrou. Lembro de ter lido uma pesquisa feita há alguns anos (desculpem, não consegui achar a fonte) em que 20 currículos iguais eram distribuídos por empresas francesas. Eles eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos candidatos. Dez eram de homens com sobrenomes franceses, ou outros dez eram de homens com sobrenomes árabes. O currículo do francês teve mais que o dobro de contatos positivos do que os do candidato árabe. Isso foi há alguns anos. Antes da Frente Nacional, partido de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24 cadeiras no parlamento europeu...

De volta à Charlie Hebdo: Ontém vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de“gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.

O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são geniais!). Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de Nossa Senhora para atacar os católicos. O Charlie Hebdo publicou a seguinte charge:


Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã.

Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar” e “explodir”...). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam...



E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Se a piada é preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas.

No artigo do Diário do Centro do Mundo, Paulo Nogueira diz: “Existem dois tipos de humor politicamente incorreto. Um é destemido, porque enfrenta perigos reais. O outro é covarde, porque pisa nos fracos. Os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo pertenciam ao primeiro grupo. Humoristas como Danilo Gentili e derivados estão no segundo.” Errado. Bater na população islâmica da França é covarde. É bater no mais fraco.

Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o já citado gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha. Em nossa sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os outros. O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.

“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.

“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim.

Por coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”. Errado. Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento. Naquela época, tão cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse dado esse toque nOs Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração achando normal fazer piada com negros e gays. Perderíamos algumas risadas? Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem engraçados). Mas se esse fosse o preço para se ter uma sociedade menos racista e homofóbica, eu escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso. 

Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis.

Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso,Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até... charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados – um deles com granadas! - nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos” – e ela sabe disso).

Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie. No twitter, um movimento – muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial, muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses, mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne suis pas Charlie. Je suis Ahmed.