sábado, 28 de novembro de 2015

Pior é começar a destruir o que já temos

Roberto Tardelli, 27/11/2015
Quem não o conhecia, conheceu-o e o detestou. Sua conversa, seu tom de voz e sua arrogância foram tão transcendentalmente humanas que poucos roteiristas teriam tamanha criatividade. Em uma tacada, em uma conversa, ele revelou uma sordidez nunca antes vista na história deste país. O cara é senador, cheio de poderes e pompa, líder de um governo cada vez mais alquebrado e que demonstra que nem só de voto vive a legitimidade. Senador da República, oito intermináveis anos de mandato. Antes de ser senador pelo PT, passeou por outros partidos, foi do inimigo, foi ministro, foi chapa quente, foi tudo, bom de conversa, um grande articulador, como gostam de dizer os analistas políticos, escolhido dentre todos pela Presidenta da República, que o viu como aquele que reunia os méritos e a arte de liderar a infantaria governista no Senado. Em poucos minutos, porém, revelou ser um farsante, mais um farsante, só que um farsante falastrão, canastrão, e, nesse festival do ão, um bocão. Prometeu ao filho de um réu, O Réu, imortal Cerveró, desses que saíram da ficção para a realidade, mundos e fugas, granas, aviões, vida na Europa, cinquenta mil por mês. Disse conhecer os Ministros, ser amigo, disse – sem dizer textualmente – que poderia ajeitar as coisas lá, no Olimpo, onde residem os deuses irrecorríveis. Estava à vontade, desinibido, seguro de si e de sua onipotência senatorial. Um cara horrendo.
Como não festejar que um ser humano de tão baixa qualidade seja preso, levado ao xilindró, com seus ternos de linho, sua arrogância, sua empáfia, seu cabelo armado, que viesse, cedinho, em cana? Junto com ele um banqueiro, único semovente mais odiado que o político, e um advogado (esse, preso, nos Estados Unidos da América, para dar o glamour folhetinesco que faltava). O trio medonho preso por ordem do Olimpo. Gritamos gol e nem era da Alemanha, era gol nosso, tupiniquim. Horas depois, um Senado inteiro, envergonhado e constrangido, de rabo entre as pernas e assustado, votava por ampla margem à manutenção da prisão do companheiro, do chapa e do ex-amigo, com direito a mais um momento de humilhação, o PT, quem te viu quem te vê, tentou desesperadamente passar o voto secreto, uma imoralidade em si mesma, quando se trata do voto parlamentar. Não precisávamos disso. O senador dormiu a primeira noite na cadeia, homologadamente preso, por vontade do Legislativo e do Judiciário, através de suas Casas Superiores.
Nas horas que corriam, um sentido ambivalente nos tomava, um misto de alívio e de terror. Alívio porque nossa fúria foi rapidamente satisfeita, e terror porque a prisão foi assustadoramente ilegal.
O parlamentar no Brasil é protegido pelo art. 53, da Constituição, que traça um sistema de garantias, fundamental para funcionamento do regime democrático, ainda que se corram riscos calculados. Um deles está em que desde a expedição do Diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (§ 2º). Isso é tão sagrado que essas garantias, assim como outras, subsistirão durante o estado de sítio só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços da Casa respectiva (§ 8º). Por mais que o Ministro Relator tenha insistido que houve flagrante, disse-o valendo-se do argumento de autoridade, o mesmo capaz de impor pela força afirmar-se que o quadrado é redondo. Porém, ainda que tomássemos o exercício da autoridade, faltaria o segundo quesito, o da inafiançabilidade do crime. A prisão, tal como foi decretada, desrespeitou a Constituição.
Porém, mais grave ainda, é que os juízes, Ministros da Suprema Corte, que decretaram a prisão, estavam impedidos de fazê-lo pela singela razão de que foram vítimas das difamações provavelmente proferidas pelo Senador. Nessa situação bizarra, a vítima julgou e mandou prender seu agressor, o que representa ofensa ao mais palmar dos princípios de direito, a imparcialidade do juiz. Imagine o amigo se o dono do carro que você amassou na rua fosse a mesma pessoa que julgasse a indenização que ele mesmo propôs; imagine se o juiz que julgasse a guarda dos filhos fosse também o pai em litígio... foi o que ocorreu: os Ministros, que se sentiram gravemente ofendidos julgaram o ofensor; resultado: cana; recuamos séculos e, obliquamente, tornamos privada a Justiça Pública.
Resumindo: não houve flagrante, o crime não era inafiançável e os juízes estavam impedidos. O mais preocupante é que não há juízes acima daqueles que o fizeram para corrigir o abuso. O Supremo, Guardião da Constituição, teve seu dia de desrespeitá-la explicitamente. Quem nos protege do vacilo do Guardião? Ninguém.
Quando um sistema de garantias se transforma em um sistema de conveniências, a democracia acaba indo para o ralo e todos os agentes públicos ficam com suas autonomias barateadas na ponta de iceberg que pretende afundar o Titanic da impunidade, mas que pode afundar toda a frota democrática, construída tão sofridamente.
Meu medo é que a euforia de hoje seja a ressaca de amanhã, quando pouco restará a ser feito. Por pior que seja o Senador, que ele seja julgado e eventualmente punido, com seus direitos assegurados, por mais odioso que ele seja, pior e mais odioso é jogar tudo para cima, relativizando garantias constitucionalmente asseguradas, é começar a destruir o que já temos de tão pouco: o Estado Democrático de Direito.

Os riscos da banalização da prisão preventiva

Luis Nassif, 27/11/2015

A banalização da prisão preventiva e a insensibilidade em relação aos impactos das investigações sobre a economia estão levando o país a uma situação de risco.
Não tenho a menor razão para ter simpatia pelo banqueiro André Esteves, muito pelo contrário. E espero que as investigações sobre o CARF revelem seus métodos.
Mas a autorização para sua prisão pelo Ministro Teori Zavaski a pedido do Procurador Geral da República Rodrigo Janot por conta de um mera gravação de conversa de Delcídio do Amaral comprova a perda de rumo de duas pessoas centrais para manter o equilíbrio no aparato repressivo. Ainda mais em uma quadra de profundo vácuo de poder no Executivo.
O álibi do PGR de que a prisão visou impedir que atrapalhe as investigações vale para qualquer situação e qualquer personagem. É álibi genérico. A prisão serviu apenas para demonstração de músculos.
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A votação da prisão, além disso, demonstrou mais uma vez os malefícios da exposição pública dos votos dos Ministros promovendo o desejo de protagonismo por parte de alguns deles.
Escolhem a frase de efeito que permita dar o lide para a mídia. Jogam para a torcida sabendo que a cobertura sempre privilegia o folclórico em detrimento do conteúdo.
A Ministra Carmen Lúcia tem se esmerado nessas boutades que eventualmente podem indicar um espírito irônico, mas, para leitores mais acurados, é a tentativa do chamado efeito leite condensado, visando recobrir um bolo de pouca consistência.
Sua conclamação ao Judiciário como última trincheira da moralidade, é de um messianismo que se aceita em juízes jovens, de primeira instância, não em quem integra o mais alto tribunal do país.
É um acinte ao próprio STF, aliás, que deveria zelar pelo equilíbrio institucional, ainda mais em uma quadra de crise sistêmica como a atual. E em uma votação que o coloca em confronto com outro poder, o Senado. Em vez do cuidado político, o exibicionismo.
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Não apenas isso.
Valendo-se da anomia total do Executivo, deixou-se de lado qualquer veleidade de reduzir os impactos econômicos dessas operações.
A Lava Jato ajudou a destruir um setor onde o país tinha excelência, das empreiteiras. Não se trata de livrar quem cometeu crime, mas de cuidados básicos para penalizar acionistas e executivos sem comprometer as empresas, os empregos e os ativos tecnológicos. Nada disso pesou. Avançou-se sobre um setor que gerava empregos, tecnologia com a gana de uma britadeira.
Agora, no caso Pactual-André Esteves, corre-se risco semelhante, ainda mais em um setor – o financeiro – em que as expectativas têm impacto direto sobre a solidez das empresas.
Esteves é um banqueiro ousado com ramificações em todos os partidos e com todas as lideranças, de Lula a Aécio, dos economistas do Real aos governadores petistas.
Tem sob sua supervisão, hoje em dia, operações relevantes para a retomada dos investimentos.
Sua prisão com base nas declarações de Delcídio não tem lógica. Que se abrisse um processo, um inquérito. Mas decretar a prisão preventiva com base em meras conversas de terceiros, com todas as implicações sobre as operações tocadas por ele, é de uma arrogância ímpar.
A informação que circula em Brasília de que Teori autorizou escuta no telefone de Delcídio Amaral – e flagrou conversas entre ele e Ministros do Supremo – é uma demonstração clara de para onde está caminhando o país do grampo.
É momento mais que oportuno para que as figuras referenciais do STF ajudem a colocar um pouco de bom senso no debate.

Carta aberta à ministra Carmen Lúcia, do STF

Dom Orvandil, 26/11/2015
Prezada Ministra Carmem Lúcia,
Nosso país acordou estupefato com a prisão de um senador da República. Por outro lado, alivio-me com a prisão de um banqueiro, um dos mais ricos do Brasil.

Não guardo intimidade com o pensamento do senador Delcídio do Amaral em virtude de suas origens políticas, ligadas à privatizações e ao nefasto neoliberalismo. Porém, sua prisão nos coloca sob espanto pelo colorido de arbitrariedade em face da imunidade parlamentar de que gozam os eleitos pelo povo para ocupar cadeira na mais alta casa legislativa.

Perdoe-me, ministra Carmem, por me dirigir a senhora sem o traquejo jurídico próprio dos advogados, já que não sou um e sem a formalidade de um tribunal, já que não pertenço a nenhum.

Aqui tenho o objetivo de questioná-la pelo que disse na 2ª Turma do STF ao justificar seu voto na decisão do ministro Teori Zavascki ao ordenar a prisão do senador Delcídio do Amaral e do banqueiro André Esteves.

É de se esperar que os homens e as mulheres eleitos e eleitas sejam honestos, honestas, probos e probas nas suas atividades parlamentares, embora alguns afrontem e desrespeitem a sensibilidade social e a cidadania, como é o caso do senador Ronaldo Caiado, que frequentemente usa camiseta amarela com os sinais de 9 dedos, em deboche à deficiência física do ex-presidente Luiz Inácio Luiz da Silva, sem que seja incomodado em momento algum por esse preconceito e crime.

Nesta carta singela desejo lhe dizer que me senti ofendido e desrespeitado como cidadão com seu discurso ao justificar seu voto a favor da prisão de Delcídio do Amaral, nesta manhã.

A senhora disse que antes nos fizeram acreditar que a esperança venceu o medo. É evidente que a senhora se referiu à campanha eleitoral e eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem citá-lo.

E vencemos mesmo, ministra Carmem. Milhões de brasileiros fomos ameaçados com o estouro do dólar, com a fuga dos empresários que investiriam em outros países, abandonando o Brasil ao desemprego e à pobreza. Uma atriz da TV Globo apareceu em noticiários e na propaganda eleitoral do PSDB fazendo caras teatrais de assustada e dizendo: “ai, estou com medo”. Pois vencemos essa tentativa. Os milhões de votos investidos em Lula transcenderam fronteiras partidárias para afirmar nossa esperança contra as ameaças rasteiras e desonestas. Vencemos o medo, com muita esperança. O Brasil se sentiu recompensado com essa vitória. A senhora sabe!

Como cidadão e como povo me sinto ofendido e agredido em minha esperança e em minha fé com essa sua fala, para mim irônica e sem nenhuma relação com o mensalão da mídia, com muitos casos dúbios e influenciados pela opinião publicada.

A senhora carregou sobre a ironia sem nexo ao afirmar que “agora o escárnio venceu o cinismo”.

Qual a relação do possível crime do senador Delcídio do Amaral, nem investigado totalmente e, muito menos julgado e condenado, com a vitória da esperança em 2002?

A senhora quer nos envolver em todos os possíveis crimes de Delcídio? A senhora falou pensando em investigação e condenação do ex-presidente Lula, o candidato a respeito de quem se usou o slogan “a esperança venceu o medo”? A senhora já sabe, mesmo sem julgamento, que o senador Delcídio do Amaral é criminoso, até mesmo antes da manifestação da casa onde ele é parlamentar?

Na fundamentação de seu voto a favor da prisão do aludido senador a senhora asseverou que “agora o escárnio venceu o cinismo”.

Pergunto se o seu voto não se referia a um senador? Se se referia ao senador Delcídio do Amaral qual a relação da ironia com os votos de milhões de brasileiros que tiveram esperança de mudar aquela realidade triste de desemprego, de miséria e de pobreza em 2002?

A senhora ameaçou quem ao afirmar posteriormente que “criminosos não passarão sobre a justiça”, alertando a todos do mundo da corrupção?

Perdão, ministra, mas a minha ofensa também vem do fato de a senhora misturar ironicamente fatos e valores sem nenhuma relação, sendo que a esperança realmente venceu o medo e sempre vencerá as vilanias da classe dominante, principalmente da rapinagem dos poderosos internacionais, que atuam por meio de jagunços nacionais.

Pior, a sua referência de falso senso de oportunidade choca por estabelecer nexos irreais entre um senador atual, preso acusado de atrapalhar investigações, com toda a força da esperança de um povo.

Choca mais o fato de a senhora não fazer nenhuma menção ao banqueiro André Esteves, dono do Banco BTG Pactual, também preso como suspeito de fazer uma operação polêmica na área internacional da Petrobras, ao comprar poços de petróleo na África, sendo ele um dos homens mais ricos do Brasil, um país pobre e, mesmo assim, de esperanças que vencem os medos.

A senhora não disse nada sobre André Esteves foi pelo fato de ele ser banqueiro e rico? Haveria na senhora algum senso de seletividade, como o há na mídia que reforçou com grande destaque as suas palavras?

Enfim, perdoe-me pela ousadia de exercer o direito de questionar, de me indignar contra as seletividades e contra o deboche em relação ao povo que tem esperança, apesar do medo que diuturnamente lhe impingem.

Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz sociais.

• Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Brasil Central e professor universitário, trabalhando duro sem explorar ninguém.

O desabafo deplorável da ministra Cármen Lucia

Carlos Fernandes, 27/11/2015

E a ministra do STF, Carmen Lúcia, não resistiu à tentação medíocre de fazer política enquanto exercia o seu dever de julgar que deveria ser amparado exclusivamente pelo que rege a nossa Constituição Federal.
No seu voto na segunda turma do STF que decidia sobre a prisão do senador Delcídio do Amaral, a excelentíssima ministra resolveu navegar no pantanoso universo paralelo onde a isenção de juízo de valor por parte do magistrado dá lugar às suas mais íntimas impressões pessoais.
De todos os desvios jurídicos possíveis, que não são poucos, o mais grave e, paradoxalmente, um dos mais comuns, é a influência que as posições políticas pessoais dos juízes podem exercer sobre os entendimentos da lei, e consequentemente sobre as decisões que são tomadas, dependendo de quem sejam os réus.
Não que seja o caso específico de Delcídio, afinal de contas a sua prisão foi autorizada por unanimidade sob fortes indícios de tentativa de atrapalhar as investigações. Mas seja como for, é assombroso o fato de uma ministra do STF utilizar-se do seu voto para expressar a sua opinião particular sobre assuntos que em nada remetiam ao caso.
Completamente dissonante com o que estava em pauta, Carmen Lúcia emendou que “houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acreditou no mote de que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a ação penal 470 e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo”.
Por um momento a ministra esqueceu inteiramente o que estava fazendo ali e poderia ser confundida facilmente com qualquer um de nossa vasta diversidade de políticos hipócritas e demagogos em plena campanha eleitoral. Por um momento a ministra desconheceu que estava julgando indivíduos e passou a discursar em prol de um modelo político de sua preferência, que a rigor, não interessa a mais ninguém que não seja ela própria.
Esse tipo de atitude que envergonha e diminui o Supremo Tribunal Federal e por representação, toda a justiça, faz parte de uma mazela judicial que em boa medida é causada pelos sempre solícitos holofotes da grande mídia nacional que não cansam de agraciar a todos aqueles que utilizem os seus cargos de destaque para politizar os eventos ao seu alcance. Gilmar Mendes que o diga.
Não é por acaso que esse único trecho de tudo que foi dito ali por todos os ministros, foi exatamente o de maior repercussão nos grandes veículos da imprensa. Até mesmo as justificativas jurídicas utilizadas para autorizar pela primeira vez na história a prisão de um senador no pleno exercício de seu mandato foi posto em segundo plano. Como tudo que oscila em torno da operação Lava Jato, o fator político foi colocado acima dos fatores jurídicos.
Curioso notar que Carmen Lúcia dá prosseguimento e sustentação ao estilo deplorável que tanto notabilizou o ex-ministro Joaquim Barbosa. A primeira, a exemplo do segundo, parece querer fazer do Supremo Tribunal Federal uma casa de justiciamento onde tudo é válido para que se imponha uma moral no mínimo duvidosa.
As semelhanças entre os dois não param por aí, a despeito de suas inquestionavelmente brilhantes carreiras jurídicas, a chegada de ambos ao apogeu do direito só foi possível graças ao sentimento democrático do ex-presidente Lula ao querer diversificar o então racista e machista quadro de ministros do STF.
Se Joaquim Barbosa foi o primeiro negro a ocupar a presidência do STF, Carmen Lúcia passou a ser em 2006, a segunda mulher na história a fazer parte do seleto grupo de juízes que tem por obrigação efetuar a guarda da Constituição Brasileira. Tanto um quanto outro, nomeados por Lula.
Joaquim Barbosa, inebriado por sua arrogância, saiu do STF como o mais incapaz de conduzir uma instituição democrática pela opinião de seus pares. Talvez seja o momento da ministra Carmen Lúcia refletir sobre seus atos para que mais essa coincidência não lhe seja imputada.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O rabo abanando o cachorro

 

por Roberto Requião
Normalmente não perco meu tempo com assuntos sem importância, como formalidades contábeis. Mas dessa vez terei que abrir uma exceção por razões óbvias. É um absurdo a forma como estão levando essa história do julgamento no Tribunal de Contas sobre contabilidade das transferências sociais feitas pelo governo através dos bancos públicos. É muito barulho por pouco e não posso me calar em relação a isso.
Sabemos que as relações financeiras entre órgãos da administração direta e indireta foram alvos de “contabilidade criativa” no Governo Dilma. Estão chamando isso agora de “pedalada”, como forma de degradar um pouco o assunto dando-lhe uma conotação diferente da sua real importância.
Parte da imprensa e da oposição tem tratado essa questão como se fosse um erro grave ou inédito. Sabemos que não é assim. Governo Brasileiro tem metas programáticas de inflação e metas programáticas fiscais. Fazem parte da política econômica que ele adota: o famigerado Tripé Macroeconômico. Não são uma exigência legal. É apenas uma opção de política macroeconômica. Equivocada, na minha opinião, mas uma opção legítima e reconhecida por todos. Em especial pela oposição e por quase todos os candidatos a Presidente nas eleições de 2014, que se ajoelharam e se penitenciaram no altar do Tripé. O mesmo altar do “Deus Mercado”, aliás.
Mas concentremo-nos no nosso assunto principal: a meta fiscal de superávit primário. Ela foi uma imposição dos credores da dívida brasileira, do capital financeiro nacional e internacional através do acordo com o FMI, quando o Brasil quebrou no final de 1998 no governo FHC.
A lei e a constituição brasileira não possuem nenhuma obrigação e muito menos nenhuma sanção específica que imponha qualquer meta de superávit primário. É uma simples opção de política econômica de governo. Uma opção que eu não concordo. Mas reconheço como legal.
O governo pensa diferente. Acha que não atingindo a meta, os banqueiros não vão mais comprar os títulos públicos e vão aumentar esse terrorismo econômico temos ouvido por aí. Não é verdade. Isso é uma pressão do capital especulativo contra o país.
O que fizeram o Ministro Mantega e seu Secretário do Tesouro, Arno Augustin, em relação a essa pressão? Eles fizeram vários “artifícios” que em uma empresa privada seriam chamados de forma glamorosa de “engenharia financeira”.
Foi uma forma de driblar a meta de superávit primário. Isso é claro. Mas é uma meta que não decorre de uma exigência legal. Era apenas uma exigência do capital financeiro. Podemos dizer que o governo queria burlar o capital financeiro, mascarando o superávit primário segundo os critérios tradicionais. Mas não a ética ou a lei. Mas não havia sanção legal contra a isso. O governo poderia aprovar um novo orçamento mostrando sua dificuldade em atingir a meta. Mas não fez isso. Acharam que geraria muito terrorismo no mercado. Eles queriam evitar as sanções do mercado internacional de dinheiro.
Poderiam ter feito diferente, poderiam ter cortado gastos em educação, saúde, bolsas de assistência social, investimentos. O mercado ficaria feliz e agradecido. O governo receberia todos os aplausos e cumprimentos nas altas esferas. Mas ia faltar o médico para curar a diarreia e a desidratação grave da filhinha da Dona Maria do Socorro, lá de Catolé da Rocha, na Paraíba. Poderia ter sido mais uma morte evitável de uma criança. Um ponto a mais na estatística de mortalidade infantil. Uma mera estatística, que os analistas financeiros manejam tão bem. Mas, segundo o mercado, o governo escolheu melhorar a “estatística errada”: cuidaram da criança primeiro...
Mantega e Arno queriam continuar mantendo as bolsas e os gastos sociais sem serem prejudicados pela pressão do capital internacional. Fizeram isso de diversas formas nos últimos anos, através de receitas não-recorrentes, ou extraordinárias, antecipação de receitas e adiamentos de despesas. Nada grave. Nada que fosse antiético ou ilegal. Mesmo porque, no ano seguinte, essas coisas seriam compensadas.
No caso em questão, no processo que está no TCU, a Caixa Econômica Federal, cujo capital é 100% estatal, realizou, como de costume, transferências sociais que lhe cabe como órgão responsável pelos repasses desse tipo de despesa. Todavia, uma parte dessas despesas referentes ao final do ano foram contabilizadas apenas no início do ano seguinte. Assim, a meta de superávit primário para mostrar para o mercado financeiro internacional foi formalmente alcançada. Para isso, fizeram uma engenharia financeira que não tem impacto nenhum na economia real e no espírito de nenhuma lei. Foi apenas o atraso da contabilização de uma despesa por alguns dias.
É tão grave atrasar um mês a contabilização de uma despesa em um órgão? Não. Isso é apenas uma questão formal de contabilidade, que fazem um enorme número de estados, municípios e governos. Uma engenharia financeira. Fernando Henrique fez isso, o Lula fez isso e a própria Dilma já tinha feito isso antes. Mas ninguém nunca havia considerado isso um erro grave. Porque não é.
Eu vou tentar explicar isso de forma mais simples. Imagina uma família que tivesse uma filha, Wendel casado com a Fernanda. Wendel e a Fernanda têm dívidas e eles pagam as suas dívidas de forma sempre pontual.
A filha deles se chama Clélia. Um dia a Clélia quebra a perna. O hospital coloca uma conta salgada para eles pagarem. Eles percebem que o dinheiro que possuem no banco é insuficiente para pagar a conta. Mas se lembram que esse dinheiro é igual ao valor que era necessário para pagar uma dívida que ia vencer nos próximos dias. O que eles fazem? Ora, eles sacam o dinheiro e pagam o hospital e atrasam o pagamento da prestação, para o mês seguinte. Assim protegem o que é mais importante. O banco não concorda, reclama, ameaça...
Em nível maior, vemos o mesmo. O capital financeiro internacional quer coagir países a deixarem de lado as suas obrigações com o povo, de emprego, de saúde, de previdência e os programas sociais, as bolsas compensatórias para que os governos reservem seu dinheiro, que façam superávit, para pagar juros e dívidas.  Ainda que com juros rigorosamente absurdos.
Resumindo, houve sim uma engenharia financeira, mas não houve crime. Ninguém se apropriou de recurso público. A economia não foi afetada, nem o interesse público.
Podemos questionar o uso dos recursos por parte do governo e o modelo econômico. Na minha opinião, faltou ao Brasil um projeto nacional, um projeto de desenvolvimento econômico, de industrialização. Mas eles mantiveram as políticas sociais, saúde, educação, previdência e bolsas compensatórias. Ótimo, eu apoio. Mas eu questiono a ausência de um projeto nacional, de desenvolvimento.
Agora, esse pessoal do dinheiro não pensa em emprego, educação, vidas, não pensa em desenvolvimento econômico e nem social. Pensa nos juros e nos lucros, na ganância e na usura.
Esse é o meu relato do que aconteceu. O TCU está julgando uma mera formalidade. E tem gente, maliciosamente, querendo derrubar uma Presidenta eleita pela maioria do povo em razão de uma formalidade. Querem vencer no tapetão, como dizem na gíria esportiva. É isso o que estamos vendo. Não mais e não menos. Uma estranha “comoção” por uma mera formalidade, uma formalidade recorrentemente quebrada e que agora virou “crime gravíssimo”... Não tem mais nada importante para nos ocuparmos neste país?

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A mosca azul do líder da oposição

Roberto Amaral   23/09/2015 


Finalmente, teve fim a chicana imposta ao Supremo Tribunal Federal pelo líder da oposição naquela Corte, o ministro Gilmar Mendes.
Relembro. Com o recurso do "pedido de vista", o inefável ministro reteve por nada menos que um ano e cinco meses (desde 2 de abril de 2014) os autos do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra dispositivos da legislação eleitoral ordinária permissivos do financiamento empresarial das eleições.
Mas não se tratava, este, de um "pedido de vista" qualquer. Se era e é injustificável o tempo durante o qual o julgamento ficou sobrestado, mais inexplicável é o fato de ser apresentado quando o julgamento estava objetivamente concluído, a saber, quando, em colégio de 11 ministros, a votação da ADI contava 6 a 1 (seis votos a favor da decretação da inconstitucionalidade do financiamento privado da política), ou seja, quando já estava definida a causa.
Por que, então, o pedido de vista? Explique-se o ministro, e explique por que reteve por quase um ano e meio o processo em seu gabinete, impedindo, assim, a proclamação do direito.
Ao sentar-se em cima do processo e assim – de forma autoritária e desrespeitosa (e também covarde, porque deixa sem ação o pensamento oponente) – impedir a conclusão do julgamento quando a decisão era conhecida, ou seja, mais precisamente impedir a proclamação do resultado, o ministro inefável conspirava contra os esforços do TSE e do próprio STF de zelar pela ética na política, pois, reconheça-se, os dois tribunais superiores de há muito tentam – e vêm tentando mesmo o Legislativo –, se não impedir, pelo menos reduzir a perniciosa participação do poder econômico no processo eleitoral, fonte de grande parte das misérias que hoje atacam a combalida democracia representativa brasileira.
Explica-se a manobra simples e rasteira do ministro. Com o pedido de vista, o líder oposicionista: 1. Deixava a matéria indefinidamente "sub judice". E 2. Dava tempo ao "baixo clero" de o Congresso tentar aprovar emenda à Constituição (defendida ainda agora pelo conhecido deputado Eduardo Cunha), de sorte a amparar o império do poder econômico sobre o processo eleitoral brasileiro. Tudo isso, deixando o País e sua dignidade sem recurso.
"Pedir vistas" significa sustar o julgamento para que o juiz ainda sem convicção firmada sobre o feito disponha de mais tempo, um tempo razoável não definido em norma específica, para estudar a causa e pronunciar seu voto. Não se condena esse instrumento. Ocorre que, sem qualquer limite de tempo, a medida pode transformar-se em instrumento de prevaricação (não se diz que seja o caso vertente), como tem ocorrido, aliás e consabidamente, com a concessão abusiva de liminares nos juízos de primeira instância.
Separemos as duas hipóteses: uma é aquela da tese, a eventualidade de um juiz pedir vistas de um processo em apreciação para assim melhor poder conhecê-lo e assim melhor decidir. Outra é a opção de que tratamos, ou seja, quando o pedido de vista tem escandaloso propósito protelatório (quando o processo deve perseguir a celeridade), e quando o pronunciamento do Tribunal (isto é, a decisão da causa) já é conhecido, sem possibilidade de reversão, no momento do pedido.
Perguntar-se-á, pergunta a OAB e pergunta a sociedade, por quanto tempo pode um juiz sentar-se sobre a causa, amparado no instituto do pedido de vista, impedindo um julgamento? E qual a justificativa jurídica e ética para um pedido de vista em julgamento já definido, o caso de que tratamos, quando era e é evidente que o móvel é simplesmente impedir que o direito se realize? Em benefício de quem? Da Justiça não pode ser.
De fato, o tempo do inefável ministro no julgamento dessa ação era o necessário para que o presidente da Câmara dos Deputados, de quem o ministro se fez aliado fático, manobrasse, com o autoritarismo peculiar e o recurso a chicanas regimentais, para, numa reforma política que não passa de contrarreforma, aprovar o financiamento empresarial de campanha, de candidatos e de partidos. A saber, o financiamento corruptor de legisladores e governantes, fonte de escândalos políticos que transitaram das páginas nobres dos jornais para a seção policial.
Só assim e só então, ou seja, depois de vencida a matéria na Câmara dos Deputados, com a aprovação, no dia 9 de setembro, do Projeto de Lei legalizador da corrupção (PL nº 5.735-F), é que o inefável ministro, no dia seguinte, anunciou seu voto vencido, liberando o pleno do STF para concluir a votação interrompida desde 2 de abril de 2014, como vimos.
O dispositivo aguarda o veto presidencial.
Na sessão do STF do dia 17, o ministro Mendes leva ao Tribunal o seu voto conhecido e antecipadamente vencido, prolatado, porém, mediante exaustivo discurso de cinco horas, algaravia que pôs em xeque a paciência civilizada de seus ouvintes compulsórios.
Tratava-se, como de hábito, de voto sem substância, cheio de remoques, pleno de recalques, idiossincrasias e partidarismo primário. E assim, e só assim, passado um ano e cinco meses, a Suprema Corte pôde retomar o julgamento intempestiva e injustificadamente interrompido, para, como esperado, decretar (8 votos a 3) a inconstitucionalidade do financiamento de campanhas eleitorais por empresas.
Mas o ministro, boquirroto e sempre em palanque, depois de ofender a Justiça com seus 565 dias sentado sobre um julgamento de alto interesse político para o País e seu futuro, ofende a inteligência de quantos tiveram de ouvi-lo, ao afirmar em alto e bom som, com direito aos bordões de praxe – e, acredite o leitor, sem corar ou tremer a voz – que a proibição do imoral financiamento empresarial das campanhas eleitorais era tão só uma tentativa do PT de sufocar a oposição, oposição que, acrescento, no Supremo, está, pelo ministro Mendes, muito mais bem representada do que no Senado por Aécio Neves.
E ainda mais, diz o ministro em seu lamentável comício, de que o Conselho Federal da Ordem os Advogados do Brasil – a quem tanto a democracia brasileira deve – entrava na história pura e simplesmente como serviçal de manobra do PT. O voto está gravado e pode ser lido e ouvido, e ficará guardado nos Anais do STF. O que dirão sobre o STF de hoje os leitores do futuro?
Eis como o ministro Mendes ofende o direito, a Constituição Federal e a OAB, no resumo trazido pela Folha de S.Paulo, edição desse dia 17 de setembro:
“Segundo Mendes, o PT manobrou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), autora da ação que questiona a legalidade das doações privadas, interessado em impedir a alternância de poder no País. Com fortes ataques ao PT, o ministro sugeriu que o partido é contra as doações de empresas porque foi mentor do esquema de corrupção da Petrobras, beneficiando-se dos desvios na estatal e, com isso, teria dinheiro para financiar campanhas até 2038”.
Em qual país do mundo essa diatribe pode ser aceita como argumento constitucional, e é admissível na boca de um ministro de sua mais alta Corte? Isso é tudo, menos raciocínio jurídico, e ainda menos linguajar digno de um Tribunal superior.
Pronunciado sob a proteção da toga mal vestida, é – verdadeiro discurso de ponta de rua – absurdamente incompatível com o decoro que a sociedade deve esperar de um ministro do Supremo. De fato, o ministro não está votando, pois seu discurso procura outras plagas, na tentativa de oferecer-se como alternativa eleitoral à direita em 2018. Com a proteção da toga que lhe queima as costas, faz do STF seu palanque político. 

O fato de um partido qualquer ser contra as doações privadas não desqualifica esse combate, muito menos pode ser apresentado como argumentação jurídica justificadora da manutenção dessas doações. Ademais, sabe o ministro que o fim das doações privadas é reivindicação que envolve vários partidos e a sociedade civil, incluídas a OAB e a CNBB, e envolve mesmo o Poder Judiciário, de que é eloquente testemunho a própria votação da ADI.
O Judiciário precisa cuidar-se. Não deve permitir que à sua inércia judicante – que tantos e irrecuperáveis danos causa diariamente ao País e ao nosso povo – se some procedimento desse jaez, que nada fica a dever à elegância parlamentar da Câmara Municipal de Duque de Caxias. Posta de lado qualquer apreciação ética relativamente ao comportamento do inefável Mendes, é de serra acima que a sociedade, via STF, não disponha de condições de evitar manipulação processual tão condenável.
No caso, tratava-se de pleito acerca de questão eminentemente política, e, por isso mesmo, aparentemente livre de qualquer suspeita de envolvimento econômico. Mas, em outras hipóteses, e são quase todas, envolvendo interesses patrimoniais, poderia o STF aguardar por mais de um ano – sem razão de mérito – por mera manobra processual a que podem recorrer as partes por seus advogados, a protelação de um julgamento de desfecho já conhecido, com o objetivo puro e simples de evitar a eficácia da sentença inevitável?
Esta, a questão: se o resultado fosse uma condenação pecuniária de que resultasse um pagamento de importância vultosa, quanto teria lucrado a parte vencida, beneficiada por quase dois anos sem o peso da condenação certa, mas adiada?
Lamentavelmente, a grave crise política em que estamos envolvidos, de par com a crise de legitimidade do Legislativo, uma agravante no quadro geral, impede uma discussão séria sobre a reforma do Estado, e nela, do Poder Judiciário, e nele do Supremo, que não pode permanecer como poder monárquico, protegidos seus ministro pelo privilégio antirrepublicano da vitaliciedade, sujeitos seus membros a processos de responsabilidade. O Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, precisa, como os demais poderes, de ser objeto de fiscalização externa, ofício que não pode ser exercido por órgão corporativo.
Evandro Lins e Silva, advogado de um tempo em que se exigia dos ministros dos tribunais superiores mais do que se cobra hoje, em termos de formação jurídica, postura política e decoro, profligava – ele que fôra ministro dos mais eminentes –, o que chamava de "promiscuidade de Brasília", o trânsito fácil entre partes e julgadores, o convívio nos jantares da capital, retirando do juiz aquele distanciamento que emprestava ainda mais dignidade ao ofício excelso.
Aos jovens estudantes e jovens advogados, e aos futuros juízes, é preciso dizer que nem sempre foi como é hoje. No Supremo já fulguraram as mais altas expressões do Direito brasileiro e figuras moralmente ilibadas – no passado recente lembremos, além de Evandro, Nelson Hungria, Orozimbo Nonato e Vitor Nunes Leal –, e lá já se destacou a bravura de estadistas como Adauto Lúcio Cardoso, Ribeiro da Costa e Gonçalves de Oliveira.
Esses nomes, desconhecidos hoje dos jovens advogados, precisam ser lembrados, mas de per si, longe de comparações contemporâneas, para que não se apequene ainda mais a nossa mais alta Corte
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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Gilmar Mendes é uma ofensa a uma corte constitucional

Fernando Brito, 16/09/2015


Estou assistindo o lendário “voto” de Gilmar Mendes, “chocado” por 17 meses de seu pedido de vista.
 
“Voto”, assim, entre aspas, porque Gilmar não se pronuncia sobre o essencial da questão constitucional que está em discussão, que é as pessoas jurídicas – as empresas – usurparem o que é próprio das pessoas físicas, desfazer-se de seu patrimônio – dinheiro – em favor de partidos e candidatos às eleições.
 
O Supremo Tribunal Federal não é lugar para que ele faça o que está fazendo, impugnando o resultado eleitoral que  ele próprio, como ministro do TSE e como relator que aprovou, mesmo com ressalvas, as contas da Presidenta eleita.
 
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar questões constitucionais, é um tribunal de teses.
 
É isso que a ação contra o financiamento privado é: uma ação de inconstitucionalidade porque alega – e com toda a razão, que uma empresa – ao contrário das pessoas – não tem posição política, partidária e muito menos eleitoral.
 
É tão óbvio que, em momento algum, Gilmar Mendes não discute a questão sobre a qual, afinal, é a que tem de se posicionar.
 
E não discute porque não tem nenhum argumento para contrariar a tese central em discussão.
 
Julgar o que “é melhor ou pior” para a democratização, o equilíbrio, a modéstia das campanhas é tarefa do legislador, não do julgador, salvo quando ele aparece como regulamentador do que a lei prevê.
 
Chama de “conspirata” a iniciativa – entre outros da Ordem dos Advogados, “esses iluminados da OAB” – de banir os milhões privados da campanha.
 
Gilmar Mendes transforma o Supremo num tribunal político, e do mais baixo nível, o da agressão, da desqualificação dos governos eleitos e de partidos políticos, e não das suas ideias e de sua legalidade ou de sua constitucionalidade.
 
Desmoraliza seus pares e desmoraliza o Tribunal.
 
Ao que parece, merecidamente, porque, ao menos até agora, não foi contestado com a energia que isso merece.
 
O papel dos demais ministros, até este momento, é tão ou mais triste que o desempenhado pelo ministro do tucanato.
 
PS. A intervenção de Gilmar se encerra com o gesto simbólico de levantar-se e virar as costas quando, depois de falar por quase cinco horas, quis que se negassem alguns segundos ao representante da Ordem dos Advogados para dizer que a ação havia sido proposta há cinco anos e por um presidente da OAB notoriamente opositor de Lula e Dilma. A tacanhez de Gilmar não poderia ter menor monumento.

Até quando Gilmar vai abusar da nossa paciência?

Paulo Nogueira, no DCM, 17/09/2015

Cícero, numa de suas orações eternas, disse o seguinte a Catilina, uma ameaça à sociedade romana daqueles dias.
“Até quando você continuará a abusar de nossa paciência?”
Não há melhor frase que esta para os brasileiros dirigirem a Gilmar Mendes.
Até quando ele continuará a abusar de nossa paciência?
O voto de cinco horas que ele deu ontem na sessão do STF que discute financiamento de campanhas é algo que desmoraliza não apenas a ele próprio – mas à Justiça como um todo.
Gilmar, com o palavreado pomposo, vazio e cínico que o caracteriza, fez aquilo que um juiz jamaisdeveria fazer: política.
Ele não se preocupa mais sequer em manter a aparência de isenção e apartidarismo.
Neste sentido, ele lembra o que aconteceu com a Veja, depois que a revista rompeu com qualquer pretensão de fazer jornalismo.
Gilmar usa o STF – para o qual foi indicado por FHC, não deve ser esquecido – para fazer política sem que tenha um único voto dos brasileiros.
É, sob este ângulo, um usurpador.
Ele acha que pode tudo. Segurou, sem nenhum pudor, a votação no STF sobre financiamento por mais de um ano, com o mais longo pedido de vista da história da República.
Teve a audácia, depois, de dizer que fora a “mão de Deus” que o levara a pedir vistas do processo.
Uma das melhores definições de seu voto veio de uma especialista na área, Márcia Semer, procuradora do estado de São Paulo.
“Inacreditável”, disse ela em sua conta no Facebook. Ela desconstruiu o blablablá de Gilmar com uma constatação: para falar aquilo que ele disse num voto interminável não era necessário sentar um ano em cima de um caso.
A procuradora acrescentou um adjetivo: “lamentável”. Ela disse que esperava mais de Gilmar, mas só posso interpretar isso como ironia. De Gilmar não se pode esperar nada melhor.
Gilmar usou seu voto para criminalizar o PT, como de hábito. E para atacar outros alvos, como integrantes do próprio STF, a OAB e blogs que ousam ter ideias diferentes das suas e da plutocracia que ele representa.
Roma não tolerou tanto assim Catilina, para voltar a Cícero.
E Gilmar?
Num momento em que o país discute tanto a si próprio, seus colegas de STF têm a obrigação moral de se colocar diante de Gilmar.
Calar, fingir que nada acontece, é apoiá-lo.
Lewandowsky, como presidente, tem a responsabilidade maior aí. Ele viu do que Gilmar é capaz no final da sessão de ontem.
Tentou cassar a voz que Lewandowsky dera a um advogado da OAB para que este pudesse responder a uma das acusações.
Contrariado, levantou-se. Antes, deu uma carteirada ao dizer que ele podia falar por cinco horas – quando se estabelecerá um limite de tempo para votos – por ser do STF. Para o pobre advogado, o silêncio.
Muitos se perguntam como se poderia promover um impeachment no STF, por causa de Gilmar.
Se alguém já fez por merecer isso, o afastamento, é ele.
Ele já abusou o suficiente da nossa paciência.At

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Prisão de Dirceu dá cavalo de pau na tese da Lava Jato

BRENO ALTMAN 
04/08/2015
A prisão preventiva do ex-ministro da Casa Civil não é apenas decisão arbitrária, sem provas e motivos razoáveis, o que já bastaria para ser fortemente questionada.
Além de estar sob regime de prisão domiciliar, à disposição da Justiça, os próprios procuradores alegam que a incriminação contra o líder petista está exclusivamente apoiada sobre duas delações premiadas cujas provas de verificação sequer foram colhidas.
O juiz Sérgio Moro deu guarida à tese da ilegalidade dos contratos de consultoria da JD Associados com empreiteiras ligadas a Petrobras, no valor de R$ 9,5 milhões em oito anos, porque dois réus confessos, em troca de eventuais benefícios, Milton Pascowitch e Júlio Camargo, afirmaram se tratar de propinas disfarçadas.
A questão central é entender os motivos que levam Moro e seus aliados por um caminho que afronta garantias constitucionais.
Sinais de manobra política são evidentes.
Como já havia ocorrido com a detenção de Joao Vaccari, a nova reclusão do principal líder da história petista, depois de Lula, é efetivada praticamente às vésperas do programa nacional do PT ir ao ar, o que está previsto para o próximo dia 6.
Também serve de combustível para as manifestações da direita, convocadas para 16 de agosto.
Um terceiro objetivo igualmente sobressai: tirar Eduardo Cunha do centro das denúncias, arrastando o PT e os governos Lula-Dilma para a linha de tiro, mais uma vez usando José Dirceu como símbolo e alvo.O mais importante, porém, é que a prisão do ex-chefe da Casa Civil foi anunciada pela Procuradoria-Geral da República e pela Polícia Federal através de narrativa que dá cavalo de pau na caracterização da Operação Lava Jato.
Antes, a explicação predominante era que se tratava de cartel empresarial na Petrobras, pagando suborno para diretores da empresa e fazendo repasses clandestinos para partidos políticos.
Agora, na versão dos procuradores, fala-se de esquema criado pelo primeiro governo Lula, sob o comando de José Dirceu, para comprar apoio parlamentar. Uma espécie de segundo “mensalão”, digamos.
Não precisa de muito esforço para registrar que estamos diante de sorrateiro enredo, cuja meta essencial é desgastar o ex-presidente da República e, talvez, levá-lo aos tribunais e à prisão.
Possivelmente não irá demorar para ser apresentado o próximo capítulo: se José Dirceu, então ministro, montou o suposto “esquema de propina”, que teria sobrevivido depois de sua saída do ministério, quem teria ordenado a continuidade da operação?
Perguntarão os roteiristas da Lava Jato e seus apaniguados: quem seria o chefe do chefe?
Os abutres da oposição de direita, aliás, já surfam nesta onda, arremessando contra Lula e Dilma.
Se o governo e o PT não saírem da pasmaceira e continuarem a validar, com a cabeça debaixo da terra, os movimentos da República de Curitiba, claramente comprometidos com as forças mais conservadoras do país, logo será tarde demais para defender o processo de mudanças iniciado em 2003 e seu líder histórico.
A política aceita quase qualquer coisa, menos a humilhação de quem decide, por covardia ou erro de cálculo, perder sem lutar.