domingo, 22 de setembro de 2013

STF legitimou todas as ditaduras


 Conceição Lemes, no blog Viomundo:

Luiz Moreira é professor de Direito Constitucional e Conselheiro Nacional do Ministério Público (CNMP), indicado pela Câmara dos Deputados.

Assim como os réus da Ação Penal 470, mais uma vítima do escrachado partidarismo político da Procuradoria-Geral da República (PGR) nos últimos oito anos.

Em 2012, teve o seu nome aprovado por todos os líderes da Câmara dos Deputados para um segundo mandato como conselheiro do CNMP.

O então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, fez de tudo para impedir a sua aprovação. Até telefonar para parlamentares.

Seus “delitos”: criticar os desmandos corporativos do Ministério Público e cobrar dos seus integrantes o mínimo de isenção pública.

Depois de seis meses de absurda campanha difamatória e perseguição implacável dentro do próprio CNMP, a verdade prevaleceu, Moreira ganhou.

Será isso ainda possível para alguns réus da AP 470, o chamado mensalão?

“Nem o Ministério Público Federal nem o Supremo Tribunal conseguiram provar as acusações”, afirma o professor Luiz Moreira. ”Foi um julgamento viciado, absolutamente de exceção.”

“O método de trabalho proposto pelo ministro-relator trouxe claro prejuízo aos direitos fundamentais do acusados, gerando consequências danosas às liberdades no Brasil e ao primado dos direitos fundamentais”, denuncia. “Além disso, ao definir as penas, os magistrados se pautaram por critérios ideológicos e não por razões jurídicas. Assim, em vez de avançarmos na garantia dos direitos fundamentais, regredimos com o julgamento da Ação Penal 470.”

“É importante que se tenha a clareza de que o Supremo Tribunal Federal legitimou todas as ditaduras brasileiras. Seja a ditadura Vargas, seja a ditadura militar”, observa. ”Tanto que os ministros que contrários à ditadura, como o ministro Evandro Lins e Silva, foram todos aposentados compulsoriamente. E os demais ministros, em vez de serem solidários a eles, foram solidários ao regime militar.”

Segue a nossa entrevista na íntegra. Conversei com o professor Luiz Moreira antes e depois do voto do ministro Celso de Mello sobre os embargos infringentes.

Em seu voto sobre os embargos infringentes, o ministro Celso de Mello disse que “os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e das pressões das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e das garantias fundamentais”. Isso sinaliza mudança no julgamento do mensalão?

Deveria significar, mas receio que não vá acontecer. Os equívocos cometidos no julgamento da Ação Penal 470 são tantos que subverteram o papel desempenhado pelo Judiciário no Ocidente.

Também em seu voto Celso de Mello explicou de modo cristalino, sem deixar qualquer dúvida, a legalidade dos votos infringentes. Por que Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Luiz Fux e Cármen Lúcia fizeram parecer que era uma questão extremamente complexa?

É uma questão tranquila, pacífica, como bem mostrou o ministro Celso de Mello. Só se tornou controversa porque o julgamento da Ação Penal 470 é absolutamente midiático.

A tramitação de matérias penais que se iniciam nos Tribunais Superiores é regida pela lei nº 8038, de 1990. Ela institui normas procedimentais para processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.

O que a lei 8098/90 diz no seu artigo 12?

Finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno (Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990 ). Ou seja, a lei 8038/90 confere aos tribunais superiores o poder de regulamentação.

Portanto, em ações originárias nos tribunais superiores, a admissão dos embargos será regida pelo regimento do tribunal. Ela remete a cada tribunal a responsabilidade de resolver a questão.

E o que diz o regimento do Supremo Tribunal Federal?

No seu artigo 333, ele diz que cabem embargos infringentes em ações penais, desde que existam quatro votos pela absolvição. Então, essa matéria do ponto de vista jurídico é pacificada.

Além disso, em 1998, apreciando projeto enviado pelo governo FHC, que revogava esse tipo de recurso, a Câmara dos Deputados entendeu que os embargos infringentes deveriam ser mantidos, para preservar os direitos fundamentais.

Qual é a pressuposição do ordenamento jurídico no Brasil? É que o Supremo Tribunal Federal é o tribunal que garante os direitos fundamentais.

E garantir os direitos fundamentais – diz o regimento do Supremo — significa que, se em uma ação penal houver quatro votos pela absolvição, esses réus fazem jus a um novo julgamento. Isso ocorre para que se forme uma maioria consistente, de modo que o Tribunal se posicione inequivocamente pela condenação dos réus.

No Direito, existe um princípio básico: “o réu é inocente até que se prove o contrário”. No julgamento da AP 470, todos os réus já foram considerados culpados de cara, sem provas. E, aí?

Na estrutura ocidental, nós temos as instituições majoritárias, o poder político. São essas instituições que aferem a vontade da população. Os desejos da população são materializados pelas políticas públicas elaboradas pelo Executivo e pelas leis do Legislativo.

A função mais importante do Judiciário não é decidir conforme a opinião publicada e as pressões dos lobbies. O papel do Judiciário é ter uma função garantista, decidindo à revelia das pressões.

Qual o papel do Judiciário quando analisa ações penais? No mínimo, afere, exige comprovação das teses levantadas pela acusação, se posicionando ao lado dos acusados.

Em que sentido?

Baseado no primado da presunção da inocência, ou seja, todo réu é considerado inocente até que o acusador demonstre o contrário.

Por isso, manda a tradição humanista do ocidente que se proceda à absolvição dos réus se houver dúvidas sobre a sua culpabilidade, se não estiverem cabalmente comprovadas as acusações.

Agora o que é estranho, muito questionável nesse julgamento, é que o Supremo Tribunal ter assumido posição idêntica à da acusação. Ou seja, o Ministério Público exigir que os réus comprovassem a sua inocência, quando cabe ao acusador, no caso o próprio Ministério Público, comprovar as acusações que fez.

Mas nem o Ministério Público nem o STF comprovaram as acusações.

Isso mesmo. É que o STF transformou a Ação Penal 470 num silogismo, devido ao método que utilizou no julgamento.

O método utilizado gera uma vinculação, uma ligação do antecedente ao consequente. Assim, se você decidiu anteriormente de um modo, essa decisão obriga a uma determinada conclusão.

Na Ação Penal 470, a maioria dos ministros do STF se utilizou de estrutura silogística num julgamento em que a estrutura é radicalmente diferente de uma estrutura lógica, porque a estrutura lógica leva a conclusões.

Ocorre que numa ação penal essas conclusões só podem ser tomadas se se comprovarem as acusações. Portanto, é questão de fato não sujeita a exercícios argumentativos, como fez o STF.

Diferentemente de um silogismo, de uma conclusão lógica, em matéria penal as dúvidas não são resolvidas argumentativamente. E as conclusões só podem ser tomadas, não por dedução, como ocorre nos livros de ficção, mas a partir das provas produzidas. O que não aconteceu nesse julgamento, que foi absolutamente de exceção.

Outro exemplo. O ministro Lewandowski, quando se iniciou a fase dos embargos declaratórios, demonstrou de forma muito clara, muito precisa, que as penas conferidas aos réus extrapolam o que usualmente se faz no Supremo.

São penas que foram estabelecidas com o claro propósito de se evitar a prescrição. Então, as penas não foram estabelecidas segundo critérios jurídicos. Mas se chegaram a elas a partir de uma postura ideológica pela condenação de A ou de B. E isso torna o julgamento viciado.

No que exatamente o julgamento da AP 470 difere de outros julgamentos no STF?

Primeiro, pelo método. O método trouxe claro prejuízo aos direitos fundamentais do acusados, gerando consequências danosas às liberdades no Brasil e ao primado dos direitos fundamentais.

Segundo, esse julgamento estabeleceu que, ao definir a pena, os magistrados se pautaram por critérios ideológicos e não por razões jurídicas.

Tanto assim o é que, como demonstrou o ministro Lewandowski, houve aumento de 60% nas penas em relação ao que usualmente se faz no Supremo – tanto nas câmaras quanto no plenário.

Tanto que o ministro Teori Zavascki disse que as penas da Ação Penal 470 são claramente exacerbadas, ou seja, aos réus dessa ação se aplicaram penas mais severas do que em outras ações penais.

E é o que ocorreu na questão dos embargos infringentes. O regimento do Supremo é de 1980. E a lei 8038/90, de dez anos depois. E o Supremo Tribunal Federal já fez 48 emendas no seu regimento.

Em duas emendas, a 36 e a47, tratou especificamente dos embargos infringentes. Em ambas o STF não apenas manteve os embargos, como especificou melhor em que condições eles cabem.

A emenda regimental 47, a última que tratou dos embargos infringentes, é de fevereiro de 2012. Já eram ministros do Supremo, Celso Mello, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Tofolli.

E esses ministros sem nenhum problema, sem nenhum questionamento, validaram a existência dos embargos infringentes. Por que só agora houve questionamento aos embargos infringentes?

Eu imaginava que para condenar uma pessoa eram necessárias provas. Só que quanto mais eu faço reportagens sobre a AP 470, como o caso do Fundo de Incentivo Visanet, constato que não foi assim. Em saúde/medicina, que é a minha área, você tem de se pautar pelas evidências científicas naquele momento. Guardadas as proporções, eu supunha no Direito era mesma coisa…

Era, era.

Não é mais no Direito ou na AP 470?

Na AP 470. O problemático da denúncia da Procuradoria Geral da República ao Supremo Federal é que ela é uma peça fictícia . Ela assume ares de texto literário. Ela vai gerando dúvidas, colocando questões que são verossilhantes. Parte da suposição de que aquilo é provável que aconteça, que tenha acontecido.

Verossimilhança, segundo o Dicionário do Houaiss, é “ligação, nexo, harmonia entre os fatos, ideias, etc, numa obra literária, ainda que os elementos imaginosos ou fantasiosos sejam determinantes no texto”. Foi assim que foi feita a denúncia do ex-procurador-geral Antônio Fernando de Souza e aceita pelo ministro Joaquim Barbosa?

Isso mesmo! A denúncia da Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal se utiliza de um método literário. Um argumento meramente ficcional.

A estrutura da argumentação utilizada é do seguinte tipo: é plausível que isso tenha acontecido?;é plausível que as pessoas não tenham conhecimento disso ou daquilo?

Como consequência vai se gerando uma série de dúvidas em torno daquele assunto conforme o argumento verossimilhante. É possível que o ministro da Casa Civil soubesse. Não é possível que fulano não tenha tomado conhecimento. Não é possível que isso não tenha ocorrido.

Então a argumentação é toda baseada nisso. Como se fosse uma peça de ficção literária.

Esse estilo não encontra guarida numa ação penal. Esse tipo argumentação é plausível na esfera cível, quando vai se designar os tipos de culpa, para que fique caracterizada a responsabilização civil, isto é, por negligência, imperícia, imprudência.

Em matéria penal não se discute culpa. Discute-se dolo. A diferença técnica é essa.

Para se exigir condenar José Dirceu, por exemplo, não há que se verificar se é possível que ele soubesse. Exigem-se provas que demonstrem cabalmente a participação dele no crime apontado. Para ele e para todos os demais réus da AP 470.

Em matéria penal é preciso demonstrar cabalmente todas as acusações. Mas, como a AP 470 foi feita como se fosse uma peça literária, levou o julgamento ao vício, isto é, o julgamento é nulo.

Por que o julgamento é viciado?

Luiz Moreira – Primeiro: pela insuficiência na atuação do Ministério Público Federal. O Ministério Público Federal não comprovou as acusações que fez.

Segundo: porque o Judiciário não pode se pautar pelo mesmo método do Ministério Público, que é o acusador.Na tradição jurídica ocidental, se exige a estrita comprovação do alegado. A ficção é apenas literária, não tem valor jurídico.

Mas o ministro-relator assumiu essa peça de ficção literária como se fosse verdadeira?

Assumiu. E o método de trabalho proposto por ele é um método que favorece a acusação em detrimento da defesa.

Quer dizer que o Supremo acabou sendo conivente com esse processo todo?

O Supremo Federal para mim hoje tem dois grupos, duas frentes.

Uma frente conservadora liderada por Joaquim Barbosa, na qual se inserem Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

E uma frente liderada pelo ministro Lewandowski, que é uma frente garantista, que imagina o Supremo como o tribunal dos direitos e das garantias constitucionais.

O grande papel desempenhado pelo ministro Levandowski, na Ação Penal 470 — e que, na minha opinião, ainda não foi devidamente valorizado – é o de defesa dos direitos do cidadão ante à ação do Estado.

Pelo contrário. O ministro Lewandowski foi achincalhado pelos colegas e pela mídia…

Ele foi achincalhado exatamente por defender os direitos fundamentais de quem quer que seja.

Em qualquer país civilizado, o Judiciário não se confunde com o Ministério Público, não se confunde com a Polícia. E também não se confunde com as estruturas majoritárias, que decidem conforme a pressão ou os interesses da maioria.

O Supremo Tribunal decide pelos direitos fundamentais. Então há de haver por parte do Judiciário um afastamento da pressão popular. Do linchamento, portanto.

E o ministro Lewandowski assumiu para ele o papel de conferir ao Supremo Tribunal Federal a missão de se desincumbir de uma tarefa judiciária estrita, que é julgar conforme as provas. O ministro Lewandowski é o juiz dos direitos fundamentais.

Em alguns momentos desse julgamento eu me lembrei da ditadura civil-militar no Brasil…

Ditadura que foi convalidada pelo Supremo Tribunal Federal. A tradição libertária do Supremo é muito recente. É importante que se tenha a clareza de que o Supremo Tribunal Federal legitimou todas as ditaduras brasileiras. Seja a ditadura Vargas, seja a ditadura militar.

O Supremo sempre foi vacilante no que diz respeito à tutela dos direitos fundamentais, em garantir os direitos humanos.

Você vê que na ditadura militar os habeas corpus eram negados. E o Supremo dava feição jurídica ao que a ditadura militar fazia em termos de violação aos direitos. Tanto que a Olga Benário, por exemplo, foi deportada com ordem judicial.

Eu cheguei a acompanhar alguns depoimentos na Auditoria Militar, na Brigadeiro Luís Antônio. A defesa não tinha direito a nada, os presos muito menos ainda. O pacote já vinha pronto, e acabou. Nesse sentido, em vez de avançar, a gente regrediu com a AP 470.

Você está certa. Regredimos, sim.

Hoje, a grande disputa no Supremo é entre uma frente defensora dos direitos fundamentais e uma frente conservadora, que se baseia no discurso da lei e da ordem, na tradição do Bush, por exemplo.Uma tradição que o tribunal não se esqueceu da época da ditadura.

O ministro Lewandowski, com a sua postura, inaugura essa fase de disputa. Ele fixa a exigência de observância dos preceitos constitucionais.

A Constituição de 1988 inaugura no Brasil a era dos direitos fundamentais. Defesa dos direitos fundamentais que o Supremo Tribunal Federal sempre se negou a fazer. Os ministros que foram contrários à ditadura, como o ministro Evandro Lins e Silva, foram todos aposentados compulsoriamente. E os demais ministros, em vez de serem solidários a eles, foram solidários ao regime militar.

Por isso, insisto: o papel do Lewandowski é histórico, porque ele estabelece que o papel do STF é garantista, como tribunal que garante os direitos fundamentais.

Neste julgamento, o papel do ministro Lewandowski transcende os limites da Ação Penal 470, estabelecendo uma frente de direitos. E as nomeações do ministro Teori Zavascki, que é um ministro altamente técnico, e do ministro Roberto Barroso, fortalecem a tese do tribunal como tribunal dos direitos fundamentais.

E agora, professor?

O nosso sistema jurídico está precisando de uma nova engenharia constitucional. Não é possível numa democracia que haja sobreposição do Judiciário sobre os poderes políticos – Legislativo e Executivo.

É preciso que nós achemos uma saída democrática para o impasse institucional em que chegamos. Nós estamos vivendo num impasse. A supremacia judicial não se coaduna com o regime democrático.

Então, precisamos de uma saída. Dois bons modelos são o inglês e o canadense. Lá, em certos tipos de manifestações judiciais – por exemplo, quando avançam sobre políticas públicas emanadas do executivo e algumas normas legislativas — a discussão volta para o parlamento e a discussão é feita pelo senado.

Do jeito que está não dá para continuar. Nós vamos gerando impasses, próprios do mundo moderno, que não são passíveis de resolução pelo Direito. Problemas que só encontram solução com a política.

Execução provisória?

Da CartaCapital

 
Walter Maierovitch — publicado 22/09/2013
 
Fora dos autos do chamado “mensalão”, os ministros Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes parecem buscar, entre as massas e na base do populismo judiciário, o prestigio até agora desfrutado por Joaquim Barbosa.
 
Quando da votação sobre a fase de admissibilidade dos embargos infringentes, os dois alongaram-se em considerações e ficou patente o objetivo de não deixar  sobrar tempo ao colega Celso de Mello para lançar, naquela suprema sessão de encerramento da semana, o voto de desempate.
Mendes, cujo impedimento decorrente de notório prejulgamento não foi levantado pelos defensores técnicos dos réus, deu ao discurso político peso superior ao do voto técnico-jurisdicional. Por seu turno, Marco Aurélio saiu do tema para, e no popular, “encher linguiça”, divagar e cansar o suficiente para levar à suspensão dos trabalhos.

A dupla de ministros alimentava a quase certeza de o voto de desempate do decano orientar-se pelo cabimento dos infringentes. Na véspera da sessão de desempate, Marco Aurélio escreveu um inadequado artigo no jornal O Globo, claramente uma pressão sobre o colega de Corte. Na verdade, ele esqueceu-se da proibição de ordem legal e deontológica a vedar ao magistrado manifestação quando o processo está em curso e ainda não concluída a sua participação jurisdicional.

Com os embargos infringentes recebidos, Marco Aurélio e Mendes lançaram na mídia a canhestra tese da execução provisória epro societatis do acórdão condenatório e, lógico, sem trânsito em julgado. Pretendem, e se colocam em panos de Ministério Público, a execução da parte do acórdão (sentença) não atacável por embargos infringentes: apenas os crimes de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha serão reexaminados nos infringentes. No fundo, a dupla lança tese nova como se fosse possível dividir o título executório ainda não aperfeiçoado, ilíquido, e a olvidar no futuro julgamento dos embargos, a possibilidade de reconhecimento de matéria ensejadora de habeas corpus de ofício.

Vale lembrar o universal princípio do nulla executio sine titolo, como salienta o jurista Paolo Di Ronzo, da Universidade de Nápoles, na sua clássica obra Manuale di Diritto dell´Esecuzione Penale. Está claro, por exemplo, que penas, por força de absolvição ou nova dosimetria em fase de embargos infringentes, podem levar à mudança do regime prisional: fechado para semiaberto ou semiaberto para aberto. Assim, e de clareza solar, o título (acórdão) a ser executado ainda não está definido, ou melhor, não é líquido e certo com relação aos 12 embargantes.

O contrário, por evidente, sucede com os 13 réus que não possuem legitimação para ajuizar embargos infringentes. Nesses casos, certificado o trânsito em julgado, o processo de execução poderá começar.
No voto de Celso de Mello ficou evidenciada a sua natureza eminentemente técnica e impessoal. Em um Estado de Direito com separação de poderes e de funções, todo magistrado, na solução processual de conflito entre a pretensão criminal-punitiva estatal e o direito subjetivo de liberdade do réu, atua jurisdicionalmente.

A propósito, o termo jurisdicional, de origem latina, acopla as expressões juris + dictio e significa dizer o direito positivo cabível ao caso em exame. Na dúvida sobre a existência de conflito entre normas aplicáveis recorre-se ao princípio do “favor rei”, isto é, aplica-se a regra universal a favorecer os réus.

Celso de Mello tinha à frente duas teses jurídicas, ambas sustentáveis e relativas à eventual derrogação, por uma lei ordinária, de artigo do regimento interno do Supremo Tribunal Federal (STF). Desta vez, portanto, o STF não decidiu politicamente como ocorreu em outros casos. Sobre decisões políticas, todos lembram ter o STF concluído pela extradição do pluriassassino Cesare Battisti e, subalternamente, delegado a decisão final ao ex-presidente Lula. Teve também o voto condutor e vencedor do então ministro Eros Grau e o STF julgou recepcionada pela Constituição de 1988 a lei de autoanistia aprovada durante a ditadura pelos militares e direcionada a garantir impunidade a assassinos e torturadores.

Com efeito, com dois novos ministros e Luiz Fux como relator, haverá um reexame das provas. A nova análise poderá resultar na manutenção das condenações, ou em absolvições, ou em novas dosimetrias das penas nos casos de crimes de formação de quadrilha e de lavagem de dinheiro. Não se deve esperar brevidade no julgamento dos embargos.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Marco Aurélio: a arte de pesar a mão depende da ocasião


Luis Nassif, 13/09/2013



A pressão do Ministro Marco Aurélio de Mello sobre seus colegas, na votação do AP 470, traz uma indagação: quem é Marco Aurélio?

Ora, apresenta-se como o polêmico “voto-vencido”, o Ministro que investe contra a maioria, contra o efeito-manada, contra a voz das ruas. Ora, como acontece agora, invoca a voz das ruas para constranger colegas.

É importante confrontar os dois personagens. Ao longo de sua história, a imagem do lutador solitário, do homem contra a manada, garantiu a Marco Aurélio a blindagem necessária para amenizar uma série enorme de decisões polêmicas. Tudo tinha uma explicação simples: Marco Aurélio é o lutador solitário, que investe contra as maiorias que prejudicam os direitos individuais.

Conquistou a admiração de muitos, inclusive a minha, que o defendi em inúmeras oportunidades.

Ontem, ao invocar as maiorias e o efeito-manada, caiu a máscara. Ou, no mínimo o álibi fica sob suspeita.

À luz do novo Marco Aurélio, relembremos alguns episódios polêmicos do antigo Marco Aurélio:

1.     Durante plantão, em julho de 1999, concedeu liminar ao empresário Luiz Estevão (do caso TRT-SP) suspendendo as investigações por quatro meses. Meses atrás, outra liminar impediu o Tribunal de Contas da União  de investigar as ligações entre a Incal e o grupo OK, de Luiz Estevão.

2.     Ordenou a libertação de Rodrigo Silveirinha, acusado de remessa ilegal de US $ 34 milhões para a Suiça.

3.     Concedeu habeas corpus a Salvatore Cacciola, seu vizinho em condomínio no Rio de Janeiro. Graças ao HC, Cacciola foi libertado e pode fugir, em seguida, para a Itália.

4.     Deu sentença favorável a um estuprador de 35 anos sob a alegação de que a vítima, de 12 anos, tinha discernimento suficiente sobre sua vida sexual.

5.     Em 2007 concedeu habeas corpus a Antônio Petrus Kalil – o Turcão – acusado de explorar caça-níqueis. Isso após duas prisões seguidas de Turcão pela PF, pelo mesmo crime.
 

Revogar infringentes é último golpe de um julgamento de exceção


Miguel do Rosário 13/09/2013


No desespero por condenar petistas a todo custo, os ministros que defenderam a revogação dos embargos infringentes entraram em contradição consigo mesmos e negaram não apenas o Regimento Interno do STF como mais de 300 anos de tradição humanista de proteção do indivíduo contra o afã justiceiro do Estado.

É o caso de lhes opor uma citação latina: Allegans contraria non est audiendus.

Aquele que dá declarações contraditórias não merece ser ouvido.

Barroso e Lewandowski disseram que reuniram, em seus votos escritos, dezenas de exemplos em que ministros antigos e atuais defenderam os infringentes na fundamentação de seus votos, em casos de ação penal.

Ontem mencionei o voto de Luiz Fux num caso de ação penal originária. Numa pesquisa rápida no site do STF, encontrei inúmeras decisões de Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes em que mencionam positivamente os embargos infringentes e aceitam a vigência do Regimento Interno. Algumas decisões, embora referentes a processo civil ou processo penal militar, servem para nos dar uma ideia da presença constante da figura do embargo infringente na gramática jurídica do Supremo e nas decisões de todos os ministros. Entretanto, como bem aconselhou um leitor, deixemos exemplos e detalhes para os técnicos da lei.

A estranheza contra embargos infringentes, demonstrada na sessão desta quinta por alguns egrégios ministros, foi absolutamente simulada.

Não há, em debates anteriores do STF realizados após a entrada em vigor da lei atual, qualquer declaração sobre a extinção dos embargos infringentes, seja em processos civis seja em ações penais.

A decisão de revogá-los é mais uma característica da excepcionalidade deste julgamento. Antes dele, jamais se mencionou essa possibilidade, tanto que os réus prepararam suas estratégias de defesa, desde o início, contando com os embargos infringentes. Revogá-los no meio de um processo corresponderá a casuísmo lamentável, um ato de arbítrio, mais um na série que vimos no julgamento desta Ação Penal.

A performance de Gilmar Mendes nesta quinta-feira, gritando descontroladamente, mostra que o ódio político, partidário e ideológico, misturado a uma submissão covarde à mídia, produziu uma degradação moral completa de alguns juízes do STF. Quanta diferença entre o ódio acaciano e hipócrita de Gilmar versus a apaixonada defesa de valores humanistas de Lewandowski! Entre o sarcasmo chauvinista e a empáfia irritante de Mello versus a elegância severa e modesta de Barroso!

Para piorar, Mendes e Mello insinuaram maliciosamente que mudanças de interpretação de ações em curso, feitas por ministros recém-indicados, poderiam dar espaço à manipulação política. É uma acusação infame, além de incrivelmente arrogante, porque pode se dar justamente o contrário. Novos integrantes podem construir uma interpretação mais justa de uma Ação Penal. É para isso que os colegiados são móveis, e a vitaliciedade do cargo não é total. O ministro tem que se retirar do STF aos 70 anos, abrindo espaço para substitutos. A democracia implica em busca do pluralismo e valorização da alternância do poder; a entrada de novos membros, portanto, oxigena a justiça e a aproxima do zeitgeist (espírito do tempo).

****

A resposta de Carmen Lúcia foi dada por Tânia Rangel, professora de Direito no FGV, em artigo do Globo publicado no mesmo dia. O Globo se tornou uma espécie de manual de emergência para ministros em apuros. Rangel observou que não existe a figura do embargo infringente no Supremo Tribunal de Justiça e portanto não deveria haver no STF. Mas isso foi uma pegadinha encontrada às pressas para ludibriar a opinião pública. O STF é único, por ser o último dos últimos dos tribunais e, portanto, onde o indivíduo deve gozar de todas as garantias contra o arbítrio do Estado.  Os próprios ministros que votaram contra os infringentes insistiram na excepcionalidade do STF, e no “privilégio” dos réus, por serem julgados numa instância tão “superior”. Privilégio de ser queimado vivo, sob os holofotes da Globonews…

Se existe uma diferença entre STF e STJ, esta só pode ser resolvida pelo Congresso Nacional, não por nenhuma interpretação criativa de ministros. E se esta houvesse, teria que privilegiar a instância máxima, o STF, e a regra mais próxima ao espírito humanista que norteia a Carta Magna.

E se os ministros acham que isso lhes dará mais trabalho, então que ampliem o horário das sessões, conforme sugeriu Lewandowski. As liberdades civis não podem pagar pela preguiça de meia dúzia de juízes.

Nesta sexta-feira, a mídia amanheceu repleta de clichês contra o “excesso de recursos” nos processos penais.

(…)

Esses recursos, que agora a mídia resolve demonizar e revogar, estão presentes há séculos na legislação brasileira, tanto na letra da lei como em seu espírito. Trata-se de uma remanescência iluminista e por isso moderna, preocupada em preservar o indivíduo contra possíveis abusos e erros do poder público, e livrá-lo da sanha linchatória de grupos econômicos ou políticos com influência sobre a justiça.

De qualquer forma, nenhuma mudança na tradição jurídica brasileira pode ser protagonizada pelo STF. Se estão incomodados, os ministros devem provocar o parlamento, porque só ele pode corrigir excessos, ausências e contradições constitucionais. Os juízes não podem inovar em matéria penal, sobretudo ao final de um processo, quando os cidadãos acusados pelo Estado tem a última chance de lutar por seus direitos. Mormente se é um processo de forte conteúdo político, polêmico, que merece ser debatido até as últimas consequências.

O que vai fazer bem ao Brasil não é ver Dirceu indo para cadeia, mas a oportunidade de debater, de forma livre, democrática e serena, sem a pressão desesperada e vingadora da grande mídia, os fundamentos e eventuais falhas do processo pelo qual ele foi condenado
.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Justiça em frangalhos

Eduardo Guimarães, 12/09/2013

A pá de cal sobre a Justiça brasileira não será a negação do regimento interno do STF por escassa maioria daquela Corte, inclusive com a provável mudança de opinião do decano Celso de Mello quanto a opiniões que expressou recentemente a favor dos mesmos embargos infringentes que agora deve renegar. O que maculou o Judiciário foi a histeria falsificada de Gilmar Mendes.

Aos berros, o mesmo juiz que concedeu um habeas-corpus ao banqueiro Daniel Dantas nas horas mortas da madrugada e que libertou o médico estuprador Roger Abdelmassih – que fugiu do país em seguida, nunca mais tendo sido encontrado – tratou de magnificar os crimes de que são acusados membros do partido adversário daquele que o indicou para o STF.

Independentemente da culpabilidade ou não dos políticos réus da Ação Penal 470 – pois há controvérsias no mesmo STF –, ao usar como um açoite a sua opinião particular sobre o Partido dos Trabalhadores – que não é réu em ação nenhuma –, Gilmar Mendes inoculou política no processo, acentuando o seu (finalmente) inegável caráter político-partidário.

O destempero de Gilmar Mendes, que chegou a babar enquanto vociferava contra o PT, por certo servirá aos recursos que serão interpostos à Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos réus vilipendiados em seus direitos mais elementares a princípio consagrado no Pacto de São José da Costa Rica, o princípio do duplo grau de jurisdição que o STF acaba de lhes negar.

Para o partido alvo do show circense de Gilmar Mendes, no entanto, talvez tenha sido a “melhor” solução – opinião, aliás, encampada por grande e influente parcela do PT.  Com a “virada de página” do julgamento do mensalão, Dilma Rousseff e centenas de petistas não terão que conviver com o noticiário sobre o processo em plena campanha eleitoral no ano que vem.

Já para a democracia, a tragédia é irreparável. O STF ser usado em vendeta política piora ainda mais a qualidade da nossa Justiça, eternamente acusada – com carradas de razões – de fazer distinções de classe social e de etnia em suas decisões. Agora, o STF também será acusado de fazer distinções políticas, o que não chega a ser novidade pela história da Corte.

Quem bem lembrou a história de injustiças do STF foi o escritor Fernando Morais, em entrevista que deu ao Blog na semana passada, durante reunião de amigos e familiares do ex-ministro José Dirceu em sua residência em São Paulo. Morais lembrou que o STF já enviou uma judia grávida para Hitler (Olga Benário) e coonestou o golpe militar de 1964.

Em 12 de setembro de 2013, a parcela racional da sociedade brasileira foi obrigada a assistir trapaças chocantes da maioria da cúpula do Poder Judiciário. Uma Justiça em frangalhos, pois, soma-se a todas as outras anomalias muito mais sérias que infernizam este país, como a imoral desigualdade de renda e de oportunidades. Razões para lamentar não nos faltam.

Resta lembrar que, há poucos dias, foi lançado um livro que versa sobre caso análogo à “compra da consciência de parlamentares” contra a qual vociferou Gilmar Mendes. Tal livro, no dia em que escrevo, já pode ser inscrito na categoria dos best-sellers, pois, segundo me foi dito pela editora que o publicou, já vendeu 10 mil exemplares e já deixou mais 15 mil em todas as livrarias importantes do país.

Tal é o sucesso do livro O Príncipe da Privataria, do escritor e jornalista Palmério Dória, que a obra já lidera a lista dos mais vendidos das mais importantes livrarias físicas e virtuais do país. O livro mostra provas de que houve “compra da consciência de parlamentares” em favor do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ainda que ele diga que foi feita por alguém que queria ajudá-lo, mas que ele não conhece.

Aliás, vale lembrar que FHC reconhece que houve tal “compra”, só que se desvincula da iniciativa de “comprar”.

É nesse cenário que vemos a mesma Justiça que desde sempre amaciou com grupos políticos simpáticos aos grandes meios de comunicação que JAMAIS se debruçou sobre a compra de votos que FHC reconhece que houve durante seu governo e em seu favor, porém “sem qualquer participação” de sua parte.

É suficiente, pois, dizer que a Justiça brasileira está em frangalhos?

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Por que jogamos merda na rede Globo

No dia 30 de agosto, realizamos protestos em sete capitais brasileiras em frente à Rede Globo e afiliadas, pela democratização da comunicação. A ação que realizamos que ganhou maior repercussão nos escrachos foi jogar merda em frente às sedes da emissora.

No dia posterior, as Organizações Globo lançaram na internet a sua confissão de culpa, em relação ao apoio que deu ao Golpe de 1964 e à Ditadura Militar. Nesse sentido, apresentamos aqui as razões que levaram a nos manifestar dessa maneira:

-Jogamos merda na Globo porque ela é ilegal e antidemocrática. A Globo é a representação máxima do monopólio das comunicações em nosso país, exercendo um poder absoluto na definição do que é verdadeiro e do que é falso, do certo e do errado, do que é legítimo e do que é ilegítimo no Brasil. Tal grau de concentração é incompatível com a Constituição de 1988, que proíbe expressamente o monopólio e oligopólio dos meios de comunicação. Um poder de controlar corações e mentes como o construído pela Globo jamais seria tolerado mesmo em países liberais.

-Jogamos merda na Globo porque ela é manipuladora e faz censura. Está intimamente associada às forças conservadoras do Brasil. Sua trajetória está marcada por uma relação intrínseca com o sistema político vigente e com a classe dominante. Para tanto, a Globo manipula fatos, constituindo e desconstituindo presidentes de acordo com seus interesses e das frações de classe as quais representa. É notória a sua orientação editorial no sentido de criminalizar e deslegitimar a ação dos movimentos sociais e suas bandeiras populares.

-Jogamos merda na Globo porque ela é golpista. Foi o suporte ideológico do Golpe Militar de 1964. As Organizações Globo, como recentemente assumiu, foram cúmplices de um regime ditatorial que perseguiu, prendeu, sequestrou, torturou e assassinou milhares de brasileiros que lutaram pela democracia, mas que eram tratados como “terroristas” nas manchetes dos seus jornais. A Globo foi conivente com a maior marca de sangue que o povo brasileiro carrega em sua história.

-Jogamos merda na Globo porque ela foi beneficiada e construiu um império sobre a obra da ditadura assassina. Nunca assumiu que seu império só se formou a partir das vantagens que obteve por sua associação com as forças sociais, políticas e militares que sustentaram a ditadura. E por conta dessa parceria, até o final do regime ocultou as lutas por redemocratização – inclusive o histórico comício de São Paulo, em 1984, pelas Diretas Já – prolongando ao máximo a sua duração. Portanto, não cometeu um erro, mas um crime.

- Jogamos merda na Globo porque ela é contra as mudanças que o povo quer. Em seu editorial a Globo reafirma que era contra as Reformas de Base propostas por João Goulart. Interrompidas pelo golpe, essas Reformas até hoje não foram realizadas, na medida em que o povo permanece sem acesso pleno a direitos elementares. A Globo é um dos principais entraves para o avanço nas necessárias reformas estruturais no Brasil, como a Reforma Educacional e Política.

-Jogamos merda na Globo porque ela é hipócrita. A Globo é propriedade da família mais rica do Brasil. Os filhos de Roberto Marinho somam um patrimônio de R$ 51 bilhões. Ao mesmo tempo, a Globo deve ao Estado brasileiro R$ 615 milhões, somando os impostos que sonegou na compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002 e as multas que recebeu da Receita Federal. Ou seja, suas empresas de comunicação atuam como agente moralizante da sociedade brasileira(julgando e denunciando desvios de verbas públicas) e promovem ações voltadas para “inclusão social”, enquanto acumulam o maior riqueza familiar do país e sonegam impostos.

-Jogamos merda na Globo porque ela joga merda na gente. A Globo contribui decisivamente para a formação de um visão de mundo conservadora, alienada e discriminadora. Sua programação está repleta de narrativas que degradam o papel da mulher, que invisibilizam a população negra e estigmatizam os homossexuais. A Globo representa também o monopólio da arte, da música e do cinema no Brasil, atuando como um torniquete que impede acesso, difusão e produção das expressões culturais mais genuínas do povo brasileiro. A emissora transformou um dos maiores patrimônios do país, o futebol, em um ativo no mercado publicitário, controlando desde a direção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) até os horários dos jogos.

-Jogamos merda na Globo para quebrar um pacto de silêncio que existe sobre o seu Império, pois a maior parte das forças políticas, seja por cumplicidade ou por medo de se desgastar politicamente com a emissora, não questiona o seu poder. Da mesma forma, o governo federal, em nome desse pacto, silencia quanto à regulamentação dos meios de comunicação e continua alimentando essa máquina de recursos por meios das verbas publicitárias dos ministérios e empresas estatais.

-Jogamos merda na Globo pois a merda é a representação do que há de mais sujo e repugnante. É aquilo que deve ser descartado. Ao mesmo tempo, a merda fertiliza e pode fazer nascer algo novo, como a confissão de culpa que a empresa assumiu por ter apoiado a ditadura durante 21 anos. Como poderá fertilizar a regulamentação e a efetiva democratização dos meios de comunicação.

Somente com atos dessa natureza seria possível expressar a necessidade urgente de democratizarmos a comunicação em nosso país. Assim como a luta por Memória, Verdade e Justiça, que pautamos a partir dos escrachos aos torturadores, a luta pela democratização da comunicação é uma etapa fundamental para consolidarmos o processo de redemocratização da sociedade brasileira até hoje inacabado.

Não descansaremos enquanto esses objetivos não forem alcançados.

Pátria Livre, Venceremos!
 

1º de setembro de 2013

Levante Popular da Juventude

Convencimento, vergonha ou conveniência na ‘autocrítica’ da Globo?


Emir Sader, 01/09/2013


O editorial do Globo começa mentindo: não foi um “apoio editorial”. O jornal, junto com os outros que ele cita – quase toda a mídia da época, que quase toda ainda anda por aí –, participou do bloco golpista que criou o clima favorável ao golpe, promoveu as “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”, que funcionavam para tentar passar a ideia de que a população pedia um golpe militar.

Apoiou o golpe, buscou sua legitimidade e apoiou a ditadura militar ao longo de toda sua existência. E seguiu justificando-a até agora.

Não apoiou apenas o golpe. Apoiou tudo o que ditadura fez de ignominioso: desde todas as formas de repressão – prisões arbitrárias, torturas, execuções, condenações sem provas, etc. etc. Apoiou a política de superexploração dos trabalhadores com o arrocho salarial, que permitiu a recuperação da economia, com um modelo de favorecimento dos ricos e dos capitais estrangeiros, em detrimento da massa da população e das pequenas e médias empresas nacionais.
Apoiou inclusive o famigerado AI-5, que terminou de liquidar com os pequenos espaços de oposição ainda existentes. Saudou o golpe, a ditadura, a repressão, a liquidação da democracia, tudo em nome da “democracia”, que ressurgiria.

Se opôs à democratização do país, às eleições diretas, ao direito de o povo brasileiro escolher seu presidente pelo voto universal, foi favorável à auto-anistia – vigente até hoje – imposta pelos militares.

Se projetou como a porta-voz oficial da ditadura, se enriqueceu com as vantagens que a ditadura lhe propiciou e que são responsáveis, até hoje, pelos privilégios que a Globo tem.

Se poderia listar muito mais monstruosidades que a Globo apoiou e de que participou ativamente. Não foi um “mau momento”, um “equívoco” de avaliação no “apoio editorial” a uma circunstância concreta.

Foi uma posição firme e forte a favor da ditadura e contra a democracia, a favor das elites e dos interesses estrangeiros, e contra o povo e o Brasil.

Por que agora esse “arrependimento”? Não foi arrependimento, senão não teria o cinismo de tentar restringir o erro a um “apoio editorial”. Teria feito autocrítica da participação ativa no mais hediondo regime que o Brasil já teve.

Em parte, como confessam, é “vergonha”, porque pessoas jogam na cara deles ter participado do golpe e da ditadura. Tentam se limpar disso, dar álibis aos que colaboram com seus órgãos de imprensa, de que “fizeram autocrítica”.

Que chega a poucos meses de se completar 50 anos do golpe e do início da ditadura. Por que não o fizeram durante a ditadura? Por que não o fizeram no começo da democratização? Por que não o fizeram em outro momento?

Porque estão cansados de ser derrotados, de ser execrados, de ter manifestações diante das suas sedes, de ter seus jornalistas repudiados pelas manifestações dos jovens, de saber que está consagrado “O povo não é bobo / Abaixo a Rede Globo”, porque sabem que não tem credibilidade alguma. Que seus principais jornalistas são vítimas das chacotas e do ridículo.

É como se, nos anos 1980, fizessem autocrítica de terem sido contra a chegada do Getúlio ao poder, de terem se oposto sempre a seus governos e de terem promovido golpes contra o maior estadista brasileiro do século passado – autocrítica ainda pendente.

O editorial expressa conveniência de uma nova reconversão da empresa – em crise econômica, de audiência e com credibilidade zero. Não por acaso, ao mesmo tempo, os filhos do fundador foram visitar o Lula, depois de tripudiar contra ele durante mais de 10 anos.

Tirarão consequências do editorial? Mudarão radicalmente a orientação e a plana maior que da continuidade ao apoio e participação no golpe e na ditadura, ou seguirão como tem sido nestes 50 anos?

É por conveniência, envergonhada, sem convencimento algum, que a Globo faz como se fosse emendar rumos a partir do editorial. Quer limpar sua imagem diante de uma opinião pública que despreza o que o jornal fiz e opina.

Se dão conta que se desviaram ainda mais do Brasil real quando, depois de apoiarem os governos fracassados de Sarney, Collor e FHC, se opõem frontalmente aos governos que o povo brasileiro mais apoiou e apoia e que deve reeleger de novo. Se dão conta que não elegem presidente da república há mais de 10 anos e que correm o serio risco de seguir assim por pelo menos toda uma segunda década. Percebem que nem sequer no Rio de Janeiro, sua sede, não conseguem eleger governador, senador, prefeito há muito tempo, e devem seguir assim.

Arrependimento, não. Senão mudariam radicalmente sua linha editorial e informativa. Vergonha, não. Senão mudariam as equipes que os fazem passar vergonha. Conveniência, sim. Para tentar romper o isolamento, a desmoralização, a falta de credibilidade, a crise econômica, a perda acelerada de audiência.

Mas nunca conseguirão apagar o papel que tiveram e seguem tendo. “O povo não é bobo / Abaixo a Rede Globo” – seguirá ecoando por todo o país que conseguiu, contra a Globo, derrotar a ditadura, derrotar seus presidentes e consagrar os presidentes que expressam a construção de um país democrático, solidário e soberano, contra todos os que apoiaram o golpe, a ditadura e os governos antipopulares.

As desculpas que a Globo não pediu

Cadu Amaral, em seu blog (03/09/13)
 
Ao término do mês de agosto e início de setembro, as Organizações Globo publicaram um pedido de desculpas pelo apoio ao golpe civil-militar de 1964. Afirma que errou motivada pela defesa da democracia (?). No editorial, os filhos do Roberto Marinho afirmam que “a democracia é um valor absoluto”. Dá para acreditar nisso?


A tevê Globo surgiu em 1965, um ano após o golpe de 1964. Por mais que você acredite em coincidências, essa é demais. Em dois de abril do ano que parou o Brasil no tempo por 20 anos, o título de seu editorial era “ressurge a democracia”. A Globo só é “A” Globo por causa do golpe e para provar que suas desculpas são sinceras, os filhos do Roberto Marinho precisam pedir muito mais desculpas. Por que se, a “democracia é um valor absoluto”, então começa logo desfazendo seu monopólio midiático, para garantir a pluralidade de informação e opinião no Brasil.

Entre as desculpas segue uma pequena lista, que não está em ordem cronológica: desculpas pela tentativa de golpe na eleição do Brizola no Rio de Janeiro em 1982; desculpas por enganar o povo brasileiro ao afirmar que o comício pelas eleições diretas na Praça da Sé nos anos 1980 era uma comemoração ao aniversário de São Paulo; desculpas pela edição do debate entre Lula e Collor na eleição presidencial de 1989; desculpas por sempre apoiar o militarismo imperial europeu e estadunidense no Oriente Médio e em países “não alinhados”; desculpas por se omitir diante da presepada das privatizações de FHC e sobre a forma que como comprou sua reeleição no Congresso Nacional – não deixe de ler “O Príncipe da Privataria” – e tem mais.

Desculpas pela proteção aos desvios das elites brasileiras e suas instituições como os bancos privados; desculpas pela tentativa de golpe durante os governos de Lula, principalmente a partir de 2005; desculpas pela bolinha de papel do Serra; desculpas por tentar fazer uma pessoa como José Serra ser presidente do Brasil; desculpas pelo tomate; pela conta de luz; pelo descontrole inflacionário que nunca veio e por fazer seres humanos assistirem e ouvirem “analistas” como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg e desculpas pelo futuro apoio a Aécio Neves ou Marina Silva na eleição do ano que vem.

Deve desculpas pela atmosférica sonegação de impostos e pelo furto de dinheiro de milhões de brasileiros no seu “Criança Esperança”. Segundo o Wikileaks, apenas 10% do arrecadado com as doações tem o destino descrito por seus artistas durante a campanha global.

Deve desculpas por ajudar a conspirar ou apoiar conspirações contra governos democraticamente eleitos nos países vizinhos como Venezuela, Paraguai, Bolívia, Equador e Argentina. Apenas por discordância ideológica ou em defesa das elites locais. Isso não condiz com a afirmação de que “democracia é um valor absoluto”.

Como se vê, desculpas não faltam à Globo para ela pedir, nem que seja meia-boca como foi esse editorial sobre o golpe de 1964. Aliás, deve desculpas por ter publicado um pedido de desculpas tão chinfrim como esse.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Barbosa e a verdadeira chicana

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog: (16/08/13)

Vamos parar de fingimento e tratar as coisas como elas são. A atitude de Joaquim Barbosa diante dos demais integrantes do STF é inaceitável e pode comprometer o bom desempenho da Justiça.

Se isso é grave em qualquer circunstância, é ainda mais grave quando se trata de um processo que admiradores do próprio Joaquim definem como o “maior julgamento do século”.


Joaquim já havia demonstrado esse comportamento em novembro de 2012, quando foi criticado pelo jornal O Estado de S. Paulo por uma atuação que “destoa do que se espera de um ministro da mais alta corte do Justiça do país”.

Cobrando “serenidade” por parte de Joaquim, o jornal ainda escreveu que o presidente do STF “como que se esmera em levar um espetáculo de nervos à flor da pele, intolerância e desqualificação dos colegas”.

A pergunta que esse comportamento obriga a fazer é simples: queremos Justiça ou queremos espetáculo?

E qual espetáculo?

Aquele em que o presidente do STF dá a entender que “todos sejam salafrários e só Vossa Excelência seja uma vestal”, como questionou Marco Aurélio Mello?

Isso pode até ser útil para quem tem projetos políticos e se confessa feliz de ver seu nome na lista de presidenciáveis, ainda que não se apresente candidato.

Mas será bom para um julgamento?

A cena de ontem foi particularmente deprimente – e olha que era apenas o segundo dia.

Debatendo recurso do deputado conhecido como bispo Rodrigues, o ministro Ricardo Lewandovski defendeu a visão de que ele deveria ter sua pena de seis anos e alguns meses revista para baixo. Por quê?

Por causa de uma falha ocorrida no julgamento, quando se condenou o bispo – parlamentar pelo PL – e outros acusados por uma lei que não estava em vigor no momento em que os fatos ocorreram. É muito natural que se questione isso, num país onde a Constituição ensina que não pode haver crime sem lei anterior que o defina.

Vamos prestar atenção. Não havia uma divergência de opinião entre ministros. Havia um fato.

Em dezembro de 2003, por iniciativa do governo Lula, aprovou-se uma legislação mais dura contra corrupção. Ela dobrava as penas. Foi com base nessa lei que o Bispo Rodrigues, e outros réus, inclusive José Dirceu, foram condenados. Só que o acordo entre o PT e o PL, e também entre o PT e outros partidos aliados, foi consumado no ano anterior, quando a legislação era mais branda. Se havia um componente criminoso nestes acordos, eles deveriam ser julgados no momento em que os fatos ocorreram.

Este mesmo debate sobre datas até ocorreu durante o julgamento, quando se debatia a pena de José Dirceu. Vários ministros lembraram a importância da data do crime para definir a punição dos réus. Celso de Mello, que teve um papel importante no primeiro julgamento, também se manifestou ontem sobre o assunto.

Como você pode ver neste link, Joaquim deu ao tribunal a informação, errada, de que as negociações entre Dirceu e o então presidente do PTB, José Carlos Martinez, haviam ocorrido depois que a nova lei já estava em vigor.

Mas isso era impossível, revelou-se mais tarde, porque naquele momento Martinez perdera a vida em função de um desastre de avião.

Estava claro, ontem, que cabia debater questão. E também está claro que, para além do destino visível do Bispo Rodrigues, o que se debatia, também, era uma decisão que teria repercussão óbvia sobre o destino de outros réus, a começar por Dirceu.

Vamos ler os diálogos, conservados pelo site Consultor Jurídico:

Celso de Mello – Os argumentos são ponderáveis. Talvez pudéssemos encerrar essa sessão e retomar na quarta-feira. Poderíamos retomar a partir deste ponto específico para que o tribunal possa dar uma resposta que seja compatível com o entendimento de todos. A mim me parece que isso não retardaria o julgamento, ao contrário, permitiria um momento de reflexão por parte de todos nós. Essa é uma questão delicada.
Barbosa – Eu não acho nada ponderável. Acho que ministro Lewandowski está rediscutindo totalmente o ponto. Esta ponderação...
Lewandowski – É irrazoável? Eu não estou entendendo...
Barbosa – Vossa Excelência está querendo simplesmente reabrir uma discussão...
Lewandowski – Não, estou querendo fazer Justiça!
Barbosa – Vossa Excelência compôs um voto e agora mudou de ideia.
Lewandowski – Para que servem os embargos?
Barbosa – Não servem para isso, ministro. Para arrependimento. Não servem!
Lewandowski – Então, é melhor não julgarmos mais nada. Se não podemos rever eventuais equívocos praticados, eu sinceramente...
Barbosa – Peça vista em mesa!
Celso de Mello – Eu ponderaria ao eminente presidente, talvez conviesse encerrar trabalhos e vamos retomá-los na quarta-feira começando especificamente por esse ponto. Isso não vai retardar...
Barbosa – Já retardou. Poderíamos ter terminado esse tópico às 15 para cinco horas...
Lewandowski – Mas, presidente, estamos com pressa do quê? Nós queremos fazer Justiça.
Barbosa – Pra fazer nosso trabalho! E não chicana, ministro!
Lewandowski – Vossa Excelência está dizendo que eu estou fazendo chicana? Eu peço que Vossa Excelência se retrate imediatamente.
Barbosa – Eu não vou me retratar, ministro. Ora!
Lewandowski – Vossa Excelência tem obrigação! Como presidente da Casa, está acusando um ministro, que é um par de Vossa Excelência, de fazer chicana. Eu não admito isso!
Barbosa – Vossa Excelência votou num sentido, numa votação unânime...
Lewandowski – Eu estou trazendo um argumento apoiado em fatos, em doutrina. Eu não estou brincando. Vossa Excelência está dizendo que eu estou brincando? Eu não admito isso!
Barbosa – Faça a leitura que Vossa Excelência quiser.
Lewandowski – Vossa Excelência preside uma Casa de tradição multicentenária...
Barbosa – Que Vossa Excelência não respeita!
Lewandowski – Eu?
Barbosa – Quem não respeita é Vossa Excelência.
Lewandowski – Eu estou trazendo votos fundamentados...
Barbosa – Está encerrada a sessão!

Embora não sejam uma novidade, as reações de Joaquim ocorrem num momento preciso. Ao contrário do que se passava em 2012, quando a minoria no tribunal era formada por vozes isoladas e muitas vezes se concentrava na postura corajosa de Ricardo Lewandovski, em sua composição atual o tribunal exibe uma formação menos favorável ao presidente.

Ninguém sabe até onde os ministros Teori Zavaski e Luiz Roberto Barroso irão avançar no dever de examinar os recursos dos réus. Em qualquer caso, não se prevê um alinhamento tão claro, as vezes automático, como aconteceu em 2012.

Zavaski e Barroso demonstraram a postura de quem pretende ser o verdadeiro juiz de suas convicções e suas sentenças.

Alguém acha que eles ficarão calados diante de uma interpelação de “intolerância e desqualificação?” Como irão reagir caso se sintam tratados como “salafrários?”

Em qualquer caso, não é uma questão de boas maneiras, vamos esclarecer.

O problema não é pessoal, não é de boa educação, de reverências nem de mesuras.

É um problema jurídico. Qualquer que seja sua motivação, as reações de Joaquim têm um componente autoritário que atrapalha o debate. Passou a hora de dizer que o presidente errava na forma mas acertava no conteúdo, como procuravam argumentar, em tom compreensivo, sem disfarçar um certo paternalismo, determinados comentaristas.

Suas atitudes mudam o conteúdo do julgamento. Sufocam argumentos divergentes. Impedem o contraditório. Não permitem o exame sereno de argumentos, de provas e alegações. Distorcem aquilo que se diz e aquilo que se ouve. Intimidam.

Se a lei assegura aos réus o direito a mais ampla defesa, o presidente de um tribunal tem o dever de estimular a diferença. Não pode, por um segundo sequer, perder a isenção que está na essência da Justiça.

Deve ser o primeiro a preocupar-se com isso pois sua obrigação é garantir o cumprimento da lei. Deve abrir espaço, até com um certo exagero, para quem tem uma visão contrária. Em vez de desqualificar os oponentes, deve agir, com toda lealdade, para que possam explicar o que pensam, num ambiente de tranquilidade. Num julgamento que não deu aos réus o direito a uma segunda sentença, o que já é em si preocupante e pode resultar em denuncia em tribunais internacionais, o bom senso recomenda tolerância redobrada neste aspecto.

Mas talvez esteja aí o problema real, que envolve uma concepção de seu papel. Como já foi observado tantas vezes, Joaquim Barbosa não se coloca como juiz do caso, mas como um promotor.

Em vários momentos, era confundido com um aliado próximo de Roberto Gurgel, o ex-procurador geral, que em 2012 chegou a esperar pelo recesso do STF para apresentar o pedido de prisão imediata dos condenados, quando suas sentenças sequer haviam transitado em julgado.

É possível sustentar, com base no julgamento, que Joaquim tem um ponto de vista unilateral, da acusação, e não tolera uma visão divergente, o que deveria ser natural num juiz, cuja atividade é simbolicamente cega, no sentido de isenta.

O que se pergunta, agora, é o que vai acontecer nesta fase.

Temos um presidente partidário, unilateral. Mas agora temos um tribunal que tem uma nova dinâmica política. Tende para o equilíbrio, para uma visão mais ampla do caso, capaz de considerar outros elementos e pontos de vista do processo.

Relator do julgamento e, mais tarde, também presidente do STF, Joaquim Barbosa concentrou os méritos da maioria das e decisões. Numa revisão, como é natural, o que se faz é questionar aquilo que se fez no passado. É hora de repensar, reavaliar, examinar mais uma vez. Não é “arrependimento”, essa palavra carregada com tanta subjetiva. É humildade, respeito pela própria consciência.

Isso é muito bom.

Talvez leve mais tempo do que muitas pessoas imaginam e até gostariam.

Oito anos depois da entrevista Roberto Jefferson à Folha de S. Paulo, deve-se admitir que sempre estivemos diante de um caso complexo. Nesta situação, o que se quer é um julgamento bem feito, coerente com os princípios do Direito.

Dentro e fora do tribunal, ninguém tem o direito de achar que menos tempo equivale a melhor justiça.

A lógica desse raciocínio é o linchamento.

Vamos combinar que Joaquim não está só nesse comportamento. Todos os dias surgem vozes capazes de uma palavra de apoio, de bajulação e gestos vergonhosos pela falta de altivez.

Submetidos à lógica autoritária da execução sumária, da mesma forma que se ajoelharam sem arriscar um único dedo mindinho para pedir a punição de torturadores nem julgamento de assassinos que tinham o verdadeiro domínio do fato da ditadura, não faltam críticos nem observadores empenhados em assustar o tribunal.

Querem atemorizar quem se recusa a assinar sentenças exemplares e punições humilhantes que já eram exigidas antes da primeira sessão, em agosto de 2012. Levantam o fantasma dos protestos, da violência.

Depois de investir anos a fio na ampliação da ignorância, na inverdade, na deformação dos espíritos, ameaçam os réus com a ignorância, a inverdade, a deformação.

Colocando-se na posição de porta-vozes autodesignados da rua, do protesto, da indignação, o que se quer é impedir, sim, que o STF faça um exame de omissões, contradições e imprecisões que restaram na primeira fase. Esta é sua obrigação, hoje.

Quem quer impedir esse trabalho está fazendo a verdadeira chicana. Quer ganhar fora dos autos.

Isso porque nós sabemos que um exame razoável dos recursos não pode ser feito nos 30 segundos que uma fábrica de refrigerante necessita para anunciar uma nova mercadoria.

Leva tempo. Sabe por quê? Por mais que a maioria dos meios de comunicação tenha feito uma cobertura no estilo programa de auditório, sem distanciamento nem espírito crítico, nos meios jurídicos se reconhece que há muito a se examinar e discutir. A ideia de que vários réus foram condenados sem prova é mais frequente do que se dá a entender. A crítica à severidade das penas também é muito comum.

Basta esperar pelo avanço das investigações sobre a Siemens e os tucanos sob suspeita para ver quantos porta-vozes de nosso moralismo indignado seguirão batendo palmas para a teoria do domínio do fato.