domingo, 28 de outubro de 2012

AP 470 - Horas de Pasmo

Horas de Pasmo


JANIO DE FREITAS, 28/10/2012


É incompreensível que a maioria do Supremo faça qualquer sentença com absoluta falta de método
"VOSSA EXCELÊNCIA aumenta a pena-base em um ano, e sua proposta fica igual à do eminente ministro fulano de tal." Ou então: aumenta ali, ou muda acolá, e pronto.

Frases assim foram ditas inúmeras vezes, por vários ministros, nos dois últimos dias de sessão do Supremo Tribunal Federal, semana passada. Artifícios e manipulações sem conta. Foi por aí que se determinaram tantas das penas que, como todas, um tribunal deve compor de modo a serem justas e seguras. Ainda mais por se tratar do Supremo entre todos os tribunais.

Mas o que parecia estar naquelas transações não eram dias, meses e anos a serem retirados de pessoas, pelo castigo da reclusão. Em uma palavra pessoal: fiquei horrorizado.

As condições vigentes no país permitem aos juízes do Supremo a formulação das condenações mais apropriadas, sejam quem forem os réus e a extensão das penas. Por isso é incompreensível que a maioria do Supremo faça qualquer sentença sob balbúrdia de desentendimento, em absoluta falta de método e com o total descritério que se pôde ver, em sessões inteiras.

"Ajustamos no final" foi expressão também muito utilizada. Está nela denunciado o desajuste de uma decisão que é nada menos do que condenação à cadeia. Com erros tão grosseiros, por exemplo, como o de precisarem constatar que davam a Ramon Hollerbach, sócio a reboque de Marcos Valério, pena de cadeia maior, como réu secundário, que a de seu mentor e réu principal nas atividades sob julgamento.

Mas, outra vez em termos muito pessoais, não sei se foi mais chocante ver a inversão, tão óbvia desde que se encaminhava, ou a naturalidade com que quase todos os ministros a receberam, satisfeitos com o recurso à expressão "ajustamos no final". Cuja forma sem excelências e eminências é "deixa pra lá, depois a gente vê".

Tudo a levar o ministro Luiz Fux, até aqui uma espécie de eco do ministro relator, a uma participação própria: "Precisamos de um critério". Não pedia o exagero de um critério geral, senão apenas para mais uma desinteligência aguda que acometia quase todos. A proposta remete, porém, a outro caso de critério proposto. E bem ilustrativo das duas sessões de determinação das penas.

O ministro Joaquim Barbosa valeu-se de uma lei inadequada para compor uma das condenações a quatro anos e seis meses. A "pena-base" de tal lei é de dois anos, e o máximo vai a 12. Logo, o ministro relator apenas multiplicara a "pena-base" por dois. Forçosa a conclusão de que a lei aplicável era outra, cuja "pena-base" é de um ano e a máxima, de oito, Joaquim Barbosa inflamou a divergência.

Luiz Fux fez a proposta conciliatória. Os quatro anos desejados pelo relator (mais seis meses de aditivo) cabem nos limites das duas leis, não implicando a mudança de lei em diferença de pena. Ora, é isso mesmo, tudo resolvido para todos.

Como assim? Na condenação proposta pelo duro relator, o réu merecia condenação a duas vezes a "pena mínima" da primeira lei, e, se mantidos os anos totais, passou a ser condenado a quatro vezes a "pena mínima" recomendada pela segunda lei, a aplicada.

Não nos esqueçamos de dizer aos filhos ou aos netos que, por decisão do Supremo, o dobro e o quádruplo agora dão no mesmo.

Por falar em proporções, Marcos Valério pegou 40 anos e Hollerbach, 14, já na inauguração de suas condenações, ainda incompletas. O casal Nardoni, acusado do crime monstruoso de maltratar e depois atirar pela janela a pequena filha do marido, foi condenado a 28 e 26 anos.

Como os ministros do STF gostam também de outras duas palavras referentes a sentenças -as "razoabilidade e proporcionalidade" necessárias à Justiça-, aquelas penas sugerem algo de muito errado em um dos julgamentos citados. Ou no Judiciário e seus códigos. Ou no Supremo.

AP 470 - O ar humano

O ar profundamente humano do STF


Luis Nassif, 29/10/2012

Períodos eleitorais deixam nervos à flor da pele e o comportamento do STF (Supremo Tribunal Federal) não tem ajudado a trazer bom senso para o debate político.

O que se passa é apenas mais um capítulo de um penoso processo de aprendizado democrático. Especialmente em um momento em que as urnas tornam mais distantes os sonhos de uma rotatividade no poder.

Do lado de parte da mídia, há uma tentativa insistente de envolver Lula no julgamento e, se possível, de processá-lo e fazê-lo perder seus direitos civis. Do lado de parte do PT, um chamado à resistência capaz de elevar ainda mais a temperatura política.

No meio, botando lenha na fogueira, os doutos Ministros.
 
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Mentes mais conspiratórias à esquerda podem suspeitar da preparação de um novo golpe. Mentes conspiradoras à direita podem mesmo acreditar que poderão fomentar o golpe.

No fundo, o que ocorre com o Supremo é apenas uma manifestação eloquente de humanidade. Não da grande humanidade, dos princípios que consagram homens e civilizações. Mas das fraquezas e vaidades que tornam - do mais solene magistrado ao mais simples cidadão - os homens iguais entre si.

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O capítulo atual do aprendizado é o da exposição do STF à luz dos holofotes, com transmissão ao vivo e, pela primeira vez, analisando um processo penal. Vaidosos por natureza, como o são todos os intelectuais dotados de conhecimento especializado – e, no caso do STF, com esse conhecimento sendo manifestação de poder – os Ministros foram expostos ao desafio de se tornarem celebridades e não perderem a linha.

Alguns não conseguiram.

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Foi o que levou um Celso de Mello a colocar gasolina na fogueira, e esforçar-se tanto pelo grande momento de oratória, insistir tanto na ênfase definitiva, a ponto de comparar partidos políticos ao PCC.

O mesmo fez Marco Aurélio de Mello, com sua defesa do golpe de 64. O Ministro que sempre se jactou de chocar os pares – inclusive com alguns posicionamentos históricos – com a concorrência inédita dos demais ministros precisou avançar alguns tons na competição. E pode haver prato melhor do que um Ministro da mais alta corte defendendo uma transgressão à Constituição?

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Essa mesma sensação de poder acometeu Joaquim Barbosa, a ponto de avançar sobre colegas que ousassem discordar da voz de Deus. Contra os advogados dos réus, não a explosão de trovões – que só são utilizados contra iguais – mas o riso irônico de quem trata com personagens insignificantes, perto da grandeza do Olimpo.

Todos trovejam e Ayres Britto passarinha, com sua voz de pastor das almas, tentando alcançar o tom grave dos colegas mais eloquentes.

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No plano real, fechadas as cortinas do espetáculo, não há possibilidade de se alcançar Lula. A teoria do “domínio do fato”, encampada pelo Procurador Geral da República, subiu na escala hierárquica e pegou José Dirceu e José Genoíno. Mas mesmo o PGR considerou exagero alçar voo para mais um degrau e alcançar Lula. Definitivamente, Lula está fora do processo.

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Assim, as investidas dos Ministros do STF explicam-se muito mais pelas fraquezas humanas, pelo estrelismo que acomete espíritos menos sábios, do que pelo maquiavelismo político. Eles são humanos. Apenas não foram informados disso.

sábado, 27 de outubro de 2012

AP 470 - Profanação

Profanação e justiça concreta na Suprema Corte

Uma frase de um ministro do STF no processo do “mensalão” sintetiza a possibilidade de uma crise de legitimidade do Supremo, no próximo período, em função de julgamentos que começam a pipocar sobre os torturadores da ditadura: os réus, disse ele, são “profanadores da República”. Mas os assassinatos e torturas - contra pessoas indefesas sob custódia do Estado - transformou os agentes da ditadura em “políticos”, abrigados na Lei de Anistia.


Com o presente texto e outros futuros, pretendo dar algum tipo de colaboração ao debate político e jurídico, que versa sobre o futuro da nossa democracia, a partir do julgamento do “mensalão”, a saber, considerando-o episódio histórico, cujos efeitos ainda são difíceis de serem apanhados na sua verdadeira dimensão: até que ponto o Estado Democrático de Direito suporta transformações econômico-sociais que utilizem as suas instituições para atacar desigualdades? Em que medida o “clamor público” - falsificado pela mídia “partidarizada” (no sentido de defender abertamente uma das “partes” em conflito político aberto) - perverte estas instituições? E, finalmente, o Brasil realmente mudou, depois deste histórico julgamento?

Para adiantar algumas opiniões que sustentarei ao longo do debate adianto: o Estado de Direito atual, com o atual sistema político eleitoral não tem condições de sustentar as promessas de promoção social e econômica, que estão inscritas nas suas normas constitucionais. A mídia não compõe um “quarto poder”, mas ela é o próprio “estado ampliado”: é estado e sociedade ao mesmo tempo, ordena as relações políticas e jurídicas, de acordo com as forças econômicas e sociais hegemônicas na formação social concreta. O Brasil não mudará nada, após este julgamento: o que pode mudar o Brasil é uma profunda reforma política e um ajuste com seu passado violento, autoritário, escravagista e, até hoje, com um presente profundamente desigual, aceito por um povo paciente e generoso.

Nas análises que fiz, não manifestei convicções pessoais sobre a culpabilidade dos réus dentro da ordem jurídico-penal vigente. Busquei analisar a coerência interna da ordem. Procurei mostrar que - em face do falso clamor público criado externamente às instituições - os réus principais já entraram condenados no julgamento. E que, por coerência necessária (entre o sistema político e o sistema de direito), a falsa consciência, promovida externamente ao Tribunal e a futura decisão do Tribunal (já proferida) deveriam coincidir.

Observei que, para isso, seria necessário violar o princípio da presunção da inocência, pelos menos em relação aos réus políticos do processo. Usar argumentos oferecidos por doutrina, criada dentro da própria ordem (“domínio funcional dos fatos”) foi passo necessário para promover um julgamento “devido”, “legal” e “legítimo” - coerente, pois, com o Estado Democrático de Direito em plena vigência.

Algumas poucas observações críticas, que se reportaram aos meus textos, entenderam que, a partir daí, eu estaria concluindo que num julgamento originário de “devido processo legal” - dentro da ordem democrática - decorrem necessariamente sentenças que devemos entender como “justas”. Não penso assim. A Justiça em “abstrato” pode, ou não, estar refletida numa sentença concreta. Fazer Justiça - em abstrato - “é dar a cada um o que lhe é devido”. Mas, devido segundo o quê? Segundo o Direito Natural? Segundo os mandamentos divinos? Segundo a Lei escrita? Segundo os princípios da Constituição e as intenções do Constituinte? A mediação feita pelo Estado para “concretizar” a Justiça - na medida possível da ordem jurídica específica- é feita pelas instituições: os homens concretos que estão nas instituições.

Entendo, por exemplo, partindo de uma ordem ideal (aliás todos partimos de ordens idealizadas para definir o que é “justo” ou “injusto”, mesmo que nos aferremos à “ordem escrita”), que “fazer Justiça” é suprimir desigualdades reais: reduzir ou suprimir opressões, respeitar diferenças, tratar desigualmente os desiguais para “compensar”, mas isso só é possível num outro sistema social, num outro sistema econômico, num outro sistema político, organizado conscientemente com esta finalidade.

Se os Tribunais pudessem, por exemplo, voltar-se contra a ordem do capital e da propriedade privada, para repor as expropriações materiais e morais que o regime reproduz, incessantemente, entre os diferentes grupos de humanos, nos diversos andares das classes, o Estado Democrático seria outro. Mas isso ainda é, não só indeterminado para o futuro, mas também inexistente no passado, como indico neste exemplo concreto: se os Tribunais pudessem julgar improcedente uma ação de despejo contra locatários que, comprovadamente, não tem recursos para pagar os seus alugueres e pudessem, ao mesmo tempo, distribuir os imóveis dos que são proprietários de centenas deles, para indivíduos e famílias que moram nas ruas, poder-se-ia crer que o Estado Democrático de Direito seria difusor de um sentido de Justiça “em abstrato”, segundo a pré-visão de mundo que adotamos.

Mas a Justiça em abstrato da qual partimos, para analisar a grandeza do Direito Objetivo ou sua pequenez, é a Justiça que - quando feita - parte da consideração que os homens são iguais para viverem em igualdade, em termos materiais e culturais: uma Justiça corretiva das desigualdades reais. A Justiça em “concreto”, dentro de uma ordem concreta - quando feita - parte da ficção da igualdade perante a lei, sem a finalidade de transformar esta ficção, ainda que gradativamente, em realização de igualdade real.

Por que isso é impossível? Porque o Estado Democrático de Direito baseia-se, também, na expectativa da segurança jurídica permanente para todos, sem exceção. Nesta medida, os reflexos da segurança jurídica são desiguais: a segurança “de ter”, para quem “já tem”, resulta em efeitos práticos diferentes da segurança de “poder querer ter”, para quem “não tem”. Parece óbvio, que isso significa congelar o mundo real como mundo sempre fadado a ser desigual e concretamente injusto.

Logo, o Estado Democrático de Direito é um Estado promotor de desigualdades consensuais, que abrem oportunidades de igualdade real, limitadas. E o fazem, tanto por meio das liberdades políticas (no terreno da Política), como por meio do princípio da igualdade perante a lei (no terreno do Direito). As decisões judiciais, frequentemente, fazem a síntese, pela autoridade estatal, das conflitividades existentes entre estas formas de composição do Estado (Direito e Política), apontando o dissenso ou a convergência entre elas.

Mais do que isso só a Revolução. Como não é o caso, nem dos governos do Presidente Lula, nem dos réus políticos do processo - reformistas dentro da ordem - concluo que uma sentença, legal e legítima, dentro do Estado de Direito que eles ajudaram a forjar e os acolheu, tanto pode ser justa como injusta. E ela pode ser injusta quando, por exemplo, fica suprimido o princípio da presunção da inocência, para decidir-se - mais do que sobre os réus - também sobre um período histórico determinado. Períodos em que as próprias instituições judiciais estiveram cativas (como a ditadura), ou que estas não estavam cativas mas não concordaram, no todo ou em parte, com o que ocorreu no período (governo Lula). Como disse um eminente ex-líder da oposição, com o que foi realizado “por essa raça”.

Mesmo quando o processo politiza-se em excesso, por interesses claros e imediatos, para interferir em processos eleitorais, isso é Justiça concreta da ordem realizada plenamente. Assim, o Estado Democrático de Direito deve ser preservado e defendido, não porque ele seja justo “em abstrato”, mas porque ele é a forma histórica concreta mais avançada de preservar os direitos democráticos do povo e a dignidade humana. Porque ele é ambíguo: fruto de uma revolução é também fruto de um processo conservador; organizador de uma nova forma de dominação é, também, receptor de instituições libertárias; repressor é, também, aberto ao desejo; autoritário é, igualmente, politizado. E, sobretudo, deve ser preservado, porque a humanidade ainda não forjou instituições superiores às que funcionaram ou funcionam nas suas melhores experiências nacionais, embora isso não queira dizer “conservá-lo”, nem no formol do positivismo, nem na falsificação metafísica das suas finalidades.

Uma frase de efeito dita por um dos ministros mais eminentes da Suprema Corte neste processo do “mensalão”, sintetiza toda esta contradição e a possibilidade de uma verdadeira crise de legitimidade da Suprema Corte, no próximo período, em função de julgamentos que começam a pipocar na primeira instância sobre os torturadores da ditadura: os réus –disse ele- deste processo (“mensalão”) são os “profanadores da República”.

Segundo o Aurélio, “profanar” significa “transgredir”, “violar” a República, uma abstração jurídica e política, como se sabe. Pois bem, a mesma Corte, em decisão recente, interpretativa da Lei de Anistia, entendeu que os assassinos à sangue-frio dentro dos cárceres, os torturadores, estupradores de mulheres indefesas sob custódia do Estado - que torturaram filhos na frente dos pais e pais na frente de filhos- que assassinaram adolescentes, jovens e velhos, estão abrigados na Lei de Anistia, porque cometeram delitos em “conexão” com as políticas de defesa da ordem política da ditadura.

A transgressão aos princípios abstratos da República transformou os agentes governamentais ligados ao governo Lula, no “mensalão”, em “profanadores”. Mas os assassinatos e torturas concretas - contra pessoas indefesas sob custódia do Estado - transformou os agentes da ditadura em “políticos”, abrigados na Lei de Anistia?

Ambos os julgamentos, como se vê, tiveram um grau de politização dentro da legalidade vigente, que superou a devida atenção ao sistema de normas do Estado de Direito. E isso ocorreu porque ambos, em última instância, deveriam ir além dos réus, atuais ou futuros. Em ambos os casos eram julgados distintos períodos históricos da História pátria, que deveriam ser preservados ou “profanados”, pelas decisões majoritárias da Corte, que são construídas a partir das visões de mundo, da ideologia e das preferências políticas dos seus ministros.

Tudo isso pôde ser feito dentro da lei e com legitimidade, pois o Estado Democrático de Direito, como já defendi em outro artigo, tem espaços de construção doutrinária amplos, que permitem proferir - com legitimidade - tanto sentenças justas como injustas. Não seria um programa mínimo da decência jurídica do país, exigir do Supremo que ele inclua no rol dos “profanadores” da República os torturadores dos corpos da República?

Esta tarefa, ao lado da Reforma Política, deve ser uma agenda da esquerda que, ao longo do governo Lula, majoritariamente declinou de ampliar as conquistas políticas democráticas no Estado Democrático de Direito, através de uma certa acomodação economicista e pragmática na direção do Estado.

Quero sustentar, finalmente, que defender a dramatização excessiva do resultado deste julgamento, será um favor para quem pretende deixar de lado a agenda das reformas institucionais, necessárias para que não mais aconteçam fatos e processos como estes. Um estranho processo político, no qual a mídia precede o Ministério Público, antecipa a decisão do Supremo e constrói uma agenda eleitoral que dá causa e oxigênio a uma oposição que sequer tem oxigênio. Muito menos causa.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

AP 470 - Esvaziamento

Esvaziamento de Serra 

247 – Para quem assistiu o Jornal Nacional da última terça-feira, em que 18 minutos foram dedicados ao mensalão, com destaque para as passagens em que Marco Aurélio Mello citou a quadrilha formada pelo “sintomático 13” e Celso de Mello comparou o partido ao PCC e ao Comando Vermelho, era de se esperar que, ontem, a toada seguisse no mesmo ritmo.

Nada disso, o que se viu foram ministros brandos, ponderados, alertando sobre a cautela na fixação de penas (com fez Marco Aurélio) e, na maioria das vezes, seguindo as posições mais equilibradas do revisor Ricardo Lewandowski (com fez Celso de Mello). No noticiário do Jornal Nacional, a reportagem dedicada ao mensalão não citou mais o PT.

E o “clímax” que poderia ter ocorrido ontem, previsto pela coluna Radar de Veja, que seria a definição das penas de José Dirceu e José Genoino, ficará para depois de 5 de novembro (após as eleições, portanto), quando Joaquim Barbosa retornará de um tratamento na coluna na Alemanha.

O freio de arrumação, aparentemente, decorre da impossibilidade de que o julgamento tenha qualquer peso maior na eleição municipal de São Paulo. Segundo dois institutos, Datafolha e Ibope, Fernando Haddad, do PT, já está praticamente eleito. Sua vantagem nos votos válidos é de vinte pontos no Datafolha (60% a 40%) e de 14 no Ibope (57% a 43%).

Isso significa que, por maior que fosse o assopro de grandes telejornais, como o JN, ou dos ministros do Supremo Tribunal Federal com suas frases de efeito, nada seria capaz de impedir a vitória do PT no próximo domingo.

Talvez por isso, tenha sido feita a reflexão entre os ministros da corte, que não gostariam de ser ver acusados de participar de uma manobra eleitoral frustrada.

Ao mesmo tempo, jornalistas políticos deixaram de comentar suas próprias pesquisas. Na Globo, Merval Pereira nada falou sobre o Ibope, ligado à emissora comandada por Ali Kamel, assim como Eliane Cantanhêde não comentou o Datafolha, como sempre fez em suas colunas. Apenas Reinaldo Azevedo publicou um pequeno post onde disse torcer para que as pesquisas estejam erradas.

Não estão. No domingo, Fernando Haddad será eleito prefeito de São Paulo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal já sabem disso, assim como os donos e colunistas dos principais meios de comunicação do País.

O balão de José Serra ficou vazio, esvaziando também o mensalão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

AP 470 - Comparato


 PARA ENTENDER O JULGAMENTO DO “MENSALÃO”, ou pretos, pobres, prostitutas e petistas, 14 de outubro de 2012

por Fábio Konder Comparato

, no Conversa Afiada

Ao se encerrar o processo penal de maior repercussão pública dos últimos anos, é preciso dele tirar as necessárias conclusões ético-políticas.
Comecemos por focalizar aquilo que representa o nervo central da vida humana em sociedade, ou seja, o poder.
No Brasil, a esfera do poder sempre se apresentou dividida em dois níveis, um oficial e outro não-oficial, sendo o último encoberto pelo primeiro.
O nível oficial de poder aparece com destaque, e é exibido a todos como prova de nosso avanço político.
A Constituição, por exemplo, declara solenemente que todo poder emana do povo.
Quem meditar, porém, nem que seja um instante, sobre a realidade brasileira, percebe claramente que o povo é, e sempre foi, mero figurante no teatro político.
Ainda no escalão oficial, e com grande visibilidade, atuam os órgãos clássicos do Estado: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e outros órgãos auxiliares.
Finalmente, completando esse nível oficial de poder e com a mesma visibilidade, há o conjunto de todos aqueles que militam nos partidos políticos.
Para a opinião pública e os observadores menos atentos, todo o poder político concentra-se aí.
É preciso uma boa acuidade visual para enxergar, por trás dessa fachada brilhante, um segundo nível de poder, que na realidade quase sempre suplanta o primeiro.
É o grupo formado pelo grande empresariado: financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio.
No exercício desse poder dominante (embora sempre oculto), o grande empresariado conta com alguns aliados históricos, como a corporação militar e a classe média superior.
Esta, aliás, tem cada vez mais sua visão de mundo moldada pela televisão, o rádio e a grande imprensa, os quais estão, desde há muito, sob o controle de um oligopólio empresarial.
Ora, a opinião – autêntica ou fabricada – da classe média conservadora sempre influenciou poderosamente a mentalidade da grande maioria dos membros do nosso Poder Judiciário.
Tentemos, agora, compreender o rumoroso caso do “mensalão”.
Ele nasceu, alimentou-se e chegou ao auge exclusivamente no nível do poder político oficial.
A maioria absoluta dos réus integrava o mesmo partido político; por sinal, aquele que está no poder federal há quase dez anos.
Esse partido surgiu, e permaneceu durante alguns poucos anos, como uma agremiação política de defesa dos trabalhadores contra o empresariado.
Depois, em grande parte por iniciativa e sob a direção de José Dirceu, foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens de negócio.
Os grandes empresários permaneceram aparentemente alheios ao debate do “mensalão”, embora fazendo força nos bastidores para uma condenação exemplar de todos os acusados.
Essa manobra tática, como em tantas outras ocasiões, teve por objetivo desviar a atenção geral sobre a Grande Corrupção da máquina estatal, por eles, empresários, mantida constantemente em atividade magistralmente desde Pedro Álvares Cabral.
Quanto à classe média conservadora, cujas opiniões influenciam grandemente os magistrados, não foi preciso grande esforço dos meios de comunicação de massa para nela suscitar a fúria punitiva dos políticos corruptos,  e para saudar o relator do processo do “mensalão” como herói nacional.
É que os integrantes dessa classe, muito embora nem sempre procedam de modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando citar a compra de facilidades na obtenção de licenças de toda sorte, com ou sem despachante; ou a não-declaração de rendimentos ao Fisco –, sempre esteve convencida de que a desonestidade pecuniária dos políticos é muito pior para o povo do que a exploração empresarial dos trabalhadores e dos consumidores.
E o Judiciário nisso tudo?
Sabe-se, tradicionalmente, que nesta terra somente são condenados os 3 Ps: pretos, pobres e prostitutas.
Agora, ao que parece, estas últimas (sobretudo na high society) passaram a ser substituídas pelos políticos, de modo a conservar o mesmo sistema de letra inicial.
Pouco se indaga, porém, sobre a razão pela qual um “mensalão” anterior ao do PT, e que serviu de inspiração para este, orquestrado em outro partido político (por coincidência, seu atual opositor ferrenho), ainda não tenha sido julgado, nem parece que irá sê-lo às vésperas das próximas eleições.
Da mesma forma, não causou comoção, à época, o fato de que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse sido publicamente acusado de haver comprado a aprovação da sua reeleição no Congresso por emenda constitucional, e a digna Procuradoria-Geral da República permanecesse muda e queda.
Tampouco houve o menor esboço de revolta popular diante da criminosa façanha de privatização de empresas estatais, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso.
As poucas ações intentadas contra esse gravíssimo atentado ao patrimônio nacional, em particular a ação popular visando a anular a venda da Vale do Rio Doce na bacia das almas, jamais chegaram a ser julgadas definitivamente pelo Poder Judiciário.
Mas aí vem a pergunta indiscreta: – E os grandes empresários? Bem, estes parecem merecer especial desvelo por parte dos magistrados.
Ainda recentemente, a condenação em primeira instância por vários crimes econômicos de um desses privilegiados, provocou o imediato afastamento do Chefe da Polícia Federal, e a concessão de habeas-corpus diretamente pelo presidente do Supremo Tribunal, saltando por cima de todas as instâncias intermediárias.
Estranho também, para dizer o mínimo, o caso do ex-presidente Fernando Collor.
Seu impeachment foi decidido por “atentado à dignidade do cargo” (entenda-se, a organização de uma empresa de corrupção pelo seu fac-totum, Paulo Cezar Farias).
Alguns “contribuintes” para a caixinha presidencial, entrevistados na televisão, declararam candidamente terem sido constrangidos a pagar, para obter decisões governamentais que estimavam lícitas, em seu favor.
E o Supremo Tribunal Federal, aí sim, chamado a decidir, não vislumbrou crime algum no episódio.
Vou mais além.
Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no processo do “mensalão”, declararam que os crimes aí denunciados eram “gravíssimos”.
Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram, chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres.
Com efeito, ao julgar em abril de 2010 a ação intentada pelo Conselho Federal da OAB, para que fosse reinterpretada, à luz da nova Constituição e do sistema internacional de direitos humanos, a lei de anistia de 1979, o mesmo Supremo Tribunal, por ampla maioria, decidiu que fora válido aquele apagamento dos crimes de terrorismo de Estado, estabelecido como condição para que a corporação militar abrisse mão do poder supremo.
O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não compareceu às duas sessões de julgamento.
Pois bem, foi preciso, para vergonha nossa, que alguns meses depois a Corte Interamericana de Direitos Humanos reabrisse a discussão sobre a matéria, e julgasse insustentável essa decisão do nosso mais alto tribunal.
Na verdade, o que poucos entendem – mesmo no meio jurídico – é que o julgamento de casos com importante componente político ou religioso não se faz por meio do puro silogismo jurídico tradicional: a interpretação das normas jurídicas pertinentes ao caso, como premissa maior; o exame dos fatos, como premissa menor, seguindo logicamente a conclusão.
O procedimento mental costuma ser bem outro.
De imediato, em casos que tais, salvo raras e honrosas exceções, os juízes fazem interiormente um pré-julgamento, em função de sua mentalidade própria ou visão de mundo; vale dizer, de suas preferências valorativas, crenças, opiniões, ou até mesmo preconceitos.
É só num segundo momento, por razões de protocolo, que entra em jogo o raciocínio jurídico-formal.
E aí, quando se trata de um colegiado julgador, a discussão do caso pelos seus integrantes costuma assumir toda a confusão de um diálogo de surdos.
Foi o que sucedeu no julgamento do “mensalão”.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

AP 470 - Os pesos e medidas

Os pesos e medidas do STF



Ministros do Supremo, 380 milhões de olhos vos contemplam

Em agosto deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello concedeu liminar suspendendo o júri popular que finalmente faria Justiça ao "caso Nicole". O empresário Pablo Russel Rocha é acusado de, em 1998, ter arrastado com sua caminhonete, até a morte, a garota de programa Selma Artigas da Silva, então com 22 anos, em Ribeirão Preto. A jovem era conhecida como Nicole.

Grávida, Nicole teve uma discussão com Pablo. A acusação diz que ele a prendeu ao cinto de segurança e a arrastou pela rua. Pablo, que responde pelo crime em liberdade, diz "não ter percebido" que a moça estava presa ao cinto e nem ter ouvido os gritos da moça porque "o som da Pajero estava muito alto". O corpo de Nicole foi encontrado, totalmente desfigurado, do outro lado da cidade. Com a suspensão, a família de Selma/Nicole vai esperar não se sabe quantos anos mais pelo julgamento do acusado.

Na segunda-feira 22 de outubro, o mesmo ministro Celso de Mello condenaria os petistas Delúbio Soares, José Dirceu e José Genoino pelo crime de formação de quadrilha. Já os havia condenado por corrupção ativa. "Eu nunca vi algo tão claro", disse ele, sobre a culpabilidade dos réus.

Em novembro de 2011, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu habeas corpus ao empresário Alfeu Crozado Mozaquatro, de São José do Rio Preto (SP), acusado de liderar a "máfia do boi", mega-esquema de sonegação fiscal no setor de frigoríficos desvendado pela Polícia Federal. De acordo com a Receita Federal, o esquema foi responsável pela sonegação de mais de 1 bilhão e meio de reais em impostos. Relator do processo, Marco Aurélio alegou haver "excesso" de imputações aos réus.

Na segunda-feira 22 de outubro, o mesmo ministro Marco Aurélio Mello condenaria os petistas Delúbio Soares, José Dirceu e José Genoino pelo crime de "formação de quadrilha". Já os havia condenado por "corrupção ativa". O esquema do chamado "mensalão" envolveria a quantia de 150 milhões de reais. "Houve a formação de uma quadrilha das mais complexas. Os integrantes estariam a lembrar a máfia italiana", disse Marco Aurélio.

Em julho de 2008, o ministro do STF Gilmar Mendes concedeu dois habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas, sua irmã Verônica e mais nove pessoas presas na operação Satiagraha da PF, entre elas o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta (que morreu em 2009). A Satiagraha investigava justamente desdobramentos do chamado mensalão, mas, para Mendes, a prisão era "desnecessária".

Segundo o MPF (Ministério Público Federal), o grupo de Dantas teria cometido o crime de evasão de divisas, por meio do Opportunity Fund, uma offshore nas ilhas Cayman que movimentou entre 1992 e 2004 quase 2 bilhões de reais. O grupo também era acusado de formação de quadrilha e gestão fraudulenta.

Na segunda-feira 22 de outubro o mesmo ministro Gilmar Mendes que livrou o banqueiro Daniel Dantas da cadeia enviou para a prisão a banqueira Kátia Rabello, presidente do banco Rural, por formação de quadrilha. Já a havia condenado por gestão fraudulenta, evasão e lavagem de dinheiro. "Sem dúvida, entrelaçaram-se interesses. Houve a formação de uma engrenagem ilícita que atendeu a todos", disse Gilmar.

O final do julgamento do mensalão multiplica por 25 – o número de condenados – a responsabilidade futura do STF. É inegavelmente salutar que, pela primeira vez na história do País, um grupo de políticos e banqueiros tenha sido condenado por corrupção. Mas, a partir de agora, os olhos da Nação estarão voltados para cada um dos ministros do Supremo para exigir idêntico rigor, para que a Justiça se multiplique e de fato valha para todos.

Estamos fartos da impunidade, sim. E também estamos fartos dos habeas corpus e liminares concedidos por alguns ministros em decisão monocrática, em geral nos finais de semana ou em férias, quando o plenário não pode ser reunido. Não se pode esquecer que o Supremo que agora condena os petistas pelo "mensalão" é o mesmo Supremo que tomou decisões progressistas importantes, como a liberação do aborto de anencéfalos e da união civil homossexual e a aprovação das cotas para afro-descendentes nas universidades. Estas foram, porém, decisões do colegiado. Separadamente, saltam aos olhos decisões injustas como as que expus acima.

Se há, como defendem alguns ministros, uma evolução no pensamento do STF como um todo, que isto também se reflita nas posições tomadas individualmente por seus membros. Não se pode, diante das câmeras de tevê, anunciar com toda a pompa a condenação e a prisão de poderosos e, à sorrelfa, na calada da noite, soltar outros. Cada vez que um poderoso for libertado por um habeas corpus inexplicável, ou que uma liminar sem pé nem cabeça for concedida por um ministro do Supremo para adiar o julgamento de gente rica, estará demonstrado que o mensalão não foi um divisor de águas coisa nenhuma.

Daqui para a frente, os ministros do Supremo Tribunal Federal têm, mais do que nunca, a obrigação de serem fiéis a si próprios e ao que demarcaram neste julgamento. Nós, cidadãos, estaremos atentos às contradições. Elas serão denunciadas, ainda que ignoradas pela grande mídia.

A Justiça pode ser cega. Mas nós, brasileiros, temos milhões de olhos. E estaremos vigiando.

AP 470 - Carta de José Dirceu

NUNCA FIZ PARTE NEM CHEFIEI QUADRILHA

Mais uma vez, a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal em me condenar, agora por formação de quadrilha, mostra total desconsideração às provas contidas nos autos e que atestam minha inocência. Nunca fiz parte nem chefiei quadrilha.

Assim como ocorreu há duas semanas, repete-se a condenação com base em indícios, uma vez que apenas o corréu Roberto Jefferson sustenta a acusação contra mim em juízo. Todas as suspeitas lançadas à época da CPI dos Correios foram rebatidas de maneira robusta pela defesa, que fez registrar no processo centenas de depoimentos que desmentem as ilações de Jefferson.

Como mostra minha defesa, as reuniões na Casa Civil com representantes de bancos e empresários são compatíveis com a função de ministro e em momento algum, como atestam os testemunhos, foram o fórum para discutir empréstimos. Todos os depoimentos confirmam a legalidade dos encontros e também são uníssonos em comprovar que, até fevereiro de 2004, eu acumulava a função de ministro da articulação política. Portanto, por dever do ofício, me reunia com as lideranças parlamentares e partidárias para discutir exclusivamente temas de importância do governo tanto na Câmara quanto no Senado, além da relação com os estados e municípios.

Sem provas, o que o Ministério Público fez e a maioria do Supremo acatou foi recorrer às atribuições do cargo para me acusar e me condenar como mentor do esquema financeiro. Fui condenado por ser ministro.

Fica provado ainda que nunca tive qualquer relação com o senhor Marcos Valério. As quebras de meus sigilos fiscal, bancário e telefônico apontam que não há qualquer relação com o publicitário.

Teorias e decisões que se curvam à sede por condenações, sem garantir a presunção da inocência ou a análise mais rigorosa das provas produzidas pela defesa, violam o Estado Democrático de Direito.

O que está em jogo são as liberdades e garantias individuais. Temo que as premissas usadas neste julgamento, criando uma nova jurisprudência na Suprema Corte brasileira, sirvam de norte para a condenação de outros réus inocentes país afora. A minha geração, que lutou pela democracia e foi vítima dos tribunais de exceção, especialmente após o Ato Institucional número 5, sabe o valor da luta travada para se erguer os pilares da nossa atual democracia. Condenar sem provas não cabe em uma democracia soberana.

Vou continuar minha luta para provar minha inocência, mas sobretudo para assegurar que garantias tão valiosas ao Estado Democrático de Direito não se percam em nosso país. Os autos falam por si mesmo. Qualquer consulta às suas milhares de páginas, hoje ou amanhã, irá comprovar a inocência que me foi negada neste julgamento.


São Paulo, 22 de outubro de 2012

José Dirceu

AP 470 - Do uso das leis

Do uso das leis e dos costumes para atingir determinados fins


Guto Camargo

A Ação Penal 470, o chamado mensalão, com a condenação de dois importantes articuladores do governo do ex-presidente Lula, José Dirceu e José Genoíno, em pleno período das eleições municipais, se tornou objeto de um grande debate político. Política à parte, a questão jurídica, apesar de ser aparentemente de difícil compreensão para os leigos precisa ser avaliada pois é determinante para entender a real dimensão do que está ocorrendo.

O ponto central da peça de acusação, motivo que possibilitou a condenação dos réus, a “teoria do domínio do fato”, também deu início a uma polêmica no meio jurídico. Resumindo muito brevemente, a teoria do domínio do fato preconiza que quando uma pessoa, embora não praticando diretamente o ato criminoso, domina e comanda a ação dos envolvidos é também culpada e pode ser punida pelo crime.

Segundo estudiosos do direito o conceito surgiu na Alemanha, foi utilizada para punir dirigentes nazistas e muito difundida a partir do julgamento do nazista Adolf Eichmann, em 1961. Na América Latina a teoria serviu de base para a punição da Junta Militar argentina e para condenar o presidente Alberto Fujimori, no Peru, pelos assassinatos cometidos pelas forças policiais nos massacres de Barrios Altos, em 1991 e de La Cantuta, em 1992.

Nos exemplos acima a coisa parece se encaixar claramente pois a violência era uma atividade planejada pelo governo como política oficial para deter os “subversivos” ou inimigos e sistematicamente aplicada pelos agentes públicos. Portanto, autorizada pelos comandantes. Se assim não fosse, seria traição, quebra de hierarquia ou insubordinação. O problema aparece quando a teoria passa a ser transplantada para outros campo do direito onde a subjetividade é muito maior.

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao utilizar a teoria do domínio do fato, segundo a defesa dos réus da Ação Penal 470 e de alguns juristas, abre um precedente perigoso porque permite a condenação sem provas. O revisor da ação, Ricardo Lewandowski, e o ministro Antonio Dias Toffoli, concordam com esta crítica. Lewandowski, inclusive, disse que – a vingar a tese – será possível a condenação do presidente da Petrobras por vazamentos de óleo ou a responsabilização de donos de jornais por artigos opinativos publicados nos jornais. Exageros a parte, os críticos da tese acreditam que a posição do STF abre brecha para que juízes de primeira instância comecem a condenar sem provas e indiscriminadamente.

O debate agitou os meios jurídicos e se tornou impossível ignorar as críticas, mesmo para aquela parte da mídia que se posiciona visivelmente a favor da punição dos envolvidos e faz o possível para inflamar a opinião pública contra os réus.

Preocupado com este aspecto o professor Alamiro Velludo Salvador Netto, da faculdade de direito da USP, observa, em sua coluna mensal no jornal Valor Econômico (8 de outubro de 2012, pág. A29):

“As pessoas, em geral, identificam-se muito mais com aqueles que preconizam as teses condenatórias do que com aqueles outros que sustentam, de algum modo, um viés de absolvição. (…) Em suma, a condenação do acusado, seja por qual delito for, é repercutido como sinônimo da justiça, na mais perfeita acepção polissêmica que tal vocábulo pode assumir. Ao contrário, a absolvição, ou mesmo a mera dúvida posta a infirmar um juízo de culpa, é vista como lenidade, brandura ou, até mesmo, impunidade.”

A preocupação do articulista é a de que, no caso do mensalão, um dos princípios mais caros ao direito, o “in dubio pro reo” (na dúvida decide-se pelo réu) esteja sendo ignorado. Feita essas considerações o professor conclui:

“Mais republicano seria se eventual absolvição fosse vista não como impunidade, mas como insuficiência da acusação ou efetiva demonstração da falta de participação do acusado. Afinal, pobre é a sociedade que sempre desconfia daquele que absolve. Mais pobre ainda aquela que incondicionalmente aplaude a condenação.”

A revista Carta Capital de 26 de setembro de 2012 (que não se deixou levar pela sanha condenatória) publicou artigo assinado por Leonardo Massud, professor de direito penal da PUC-SP, no qual ele admite a possibilidade do uso da teoria do domínio do fato no caso do julgamento da Ação Penal 470 mas observa que “A questão não é de ordem teórica, mas de cunho probatório” . Leonardo Massud diz que, independentemente da teoria, a acusação precisa apresentar “elementos de prova no sentido de que houve condutas concretas que, no contexto geral dos autos, possam ser tidas como sinais inequívocos de adesão aos crimes praticados, seja mandando praticá-los, seja executando-os.” (página 33, nº 716)

Assim, o parágrafo final conclui:

“Em crimes como corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro e mesmo quadrilha (que exige alguns requisitos como o número de participantes, a estabilidade, divisão de tarefas, finalidade de praticar reiteradamente crimes) não basta que o agente tenha conhecimento da ocorrência criminosa. É preciso, de alguma forma, tomar parte dela. O mero conhecimento pode configurar eventualmente outra forma penal, como uma das formas possíveis de prevaricação, quando, por exemplo, o agente, sabendo da prática do crime, deixa de denunciar ou adotar como funcionário público as medidas dele exigíveis, porque se encontra movido por sentimento pessoal (proteger amigos, aliados e colegas de partido).”

Outro ponto que vem causando polêmica é o fato de que o julgamento acontecer de forma direta e imediata no Supremo Tribunal Federal. O problema neste caso se dá pela possibilidade de se ignorar um dos princípios do direito, o chamado duplo grau de jurisdição; o direito que o cidadão tem de ser julgado duas vezes. Pelo fato do caso ter ingressado inicialmente no STF não é possível recorrer da decisão à uma corte superior, o que poderia ser considerado como um atentado ao amplo direito de defesa. Por isso que um dos condenados, Valdemar da Costa Neto, do Partido da República – PR (antigo PL), manifestou sua intenção de apelar à Corte Interamericana de Justiça (o que, por si só, abre outro complicado debate jurídico).

Sobre isso, o advogado Luiz Flávio Gomes, que foi promotor de justiça e juiz, após afirmar que “O valor histórico e moralizador desta sentença é inigualável”, faz, em artigo publicado na Folha de S. Paulo (13 de outubro de 2012, pág. A3) a seguinte ressalva:

“Mas do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do Estado de Direito, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis.

Por vícios e procedimentos decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes, autoritária jurisprudência brasileira à internacional, a mais histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.”

Estes poucos exemplos são suficientes para demonstrar a polêmica jurídica suscitada pelos argumentos utilizados pela acusação, particularmente pelo ministro relator, Joaquim Barbosa. Visivelmente imbuído do desejo de condenar os réus, a ponto de, em mais de uma oportunidade, se indispor com o ministro revisor, Ricardo Lewandowski, por este não concordar com suas teses, Joaquim Barbosa se tornou o centro das atenções daquela parcela da mídia que quer fazer do julgamento do mensalão uma opereta política.

Mas, como a questão jurídica nunca vem desacompanhada de uma posição ideológica, e, para que não reste dúvida sobre a vocação política do STF, vamos recorrer ao verdadeiro desabafo que o jurista Fábio Konder Comparato apresentou em seu artigo Para entender o julgamento do “Mensalão”, divulgado na internet no site Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim (1). Após enumerar vários casos suspeitos de corrupção e escândalos políticos nos quais o STF não tomou nenhuma providência, afirma o articulista:

“Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no processo do “mensalão”, declararam que os crimes aí denunciados eram “gravíssimos”. Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram, chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres.

Com efeito, ao julgar em abril de 2010 a ação intentada pelo Conselho Federal da OAB, para que fosse reinterpretada, à luz da nova Constituição e do sistema internacional de direitos humanos, a lei de anistia de 1979, o mesmo Supremo Tribunal, por ampla maioria, decidiu que fora válido aquele apagamento dos crimes de terrorismo de Estado, estabelecido como condição para que a corporação militar abrisse mão do poder supremo. O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não compareceu às duas sessões de julgamento.”

Se juridicamente a situação não é clara, do ponto de vista político o debate é explosivo. A coincidência de datas (seria mera coincidência?) entre o julgamento e as eleições municipais serviu de munição para ataques violentos contra o PT e seus candidatos.

Na verdade, trata-se claramente de um julgamento político (o que não quer dizer que não haja atos ilícitos por parte dos envolvidos a serem julgados), mas sim, que tudo foi planejado para que a sentença – a mais dura possível – cumpra o papel de ser uma arma nas mãos dos inimigos do Partido dos Trabalhadores. O judiciário, neste caso, está inovando para servir aos interesses de um grupo político.

Ao levantar esta situação me ocorreu uma comparação assustadora. Me lembrei do surgimento da “Lei Fleury”.

O delegado Sérgio Paranhos Fleury foi um dos agentes mais atuantes na repressão aos perseguidos políticos do Brasil durante o regime militar. Fleury também foi um dos comandantes do Esquadrão da Morte, uma milicia clandestina que se especializou em matar supostos bandidos. Um grupo de promotores paulistas, entre eles Hélio Bicudo, investigou as mortes e conseguiu denunciar o delegado Fleury como participante de vários crimes de assassinato, o que o levou para a cadeia em 1973. A lei de então determinava que a pessoa que fosse levada ao Tribunal do Júri ficaria presa atá a data do julgamento.

Para livrar o delegado da prisão o governo Médici fez com que a Câmara Federal aprovasse, a toque de caixa, Projeto de Lei do deputado Cantídio Sampaio, líder do governo, que alterava o código Penal garantindo aos réus primários o direito de esperar o julgamento em liberdade.

Com essa medida, Fleury deixou a prisão e aguardou o julgamento em liberdade. No ano seguinte foi absolvido pelo 2º Tribunal do Júri de São Paulo e condecorado como policial do ano. Em 1979 o delegado morreu afogado em Ilhabela quando caiu no mar ao passar de um barco para outro, em um episódio que, para muitos, se tratou de “queima de arquivo”. Isso é categoricamente afirmado pelo ex policial – e também integrante do aparelho repressivo – Cláudio Guerra no livro, Memórias de uma guerra suja.

Durante a ditadura foi feita uma verdadeira ginástica jurídica para livrar um torturador da prisão e agora, no regime democrático, ministros da mais alta corte de justiça não medem esforços para condenar os envolvidos no mensalão (muitos deles ex-combatentes contra o autoritarismo militar), sem se importar se isto viola os princípios básicos do direito, da cidadania, da república ou, mesmo, se pode criar uma confusão jurídica no país. Tendo em vista o precedente histórico do delegado Fleury, acho justo que, a partir de agora, a “teoria do domínio do fato” passe a ser conhecida entre nós como “teoria Zé Dirceu”. Afinal, os fatos históricos se repetem por duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

AP 470 - pérolas dos Mellos

Marco Aurélio Mello e Celso de Mello foram responsáveis pelos maiores arroubos retóricos no clímax do julgamento da Ação Penal 470. Um citou o número 13 do PT e comparou o partido à mafia italiana. Outro, ao PCC e ao Comando Vermelho, afirmando ainda que os réus, como José Genoino e José Dirceu, devem ser punidos como delinquentes – aliás, por que não enforcá-los? Talvez tenha sido coincidência que tudo isso tenha ocorrido a apenas seis dias das eleições. Talvez.
22 de Outubro de 2012 às 21:33

247 – Este 22 de outubro de 2012 é o dia que, para o bem ou para o mal, entrará para a história do Supremo Tribunal Federal. A data em que dois ex-presidentes do partido político mais votado no primeiro turno das eleições municipais – José Dirceu e José Genoino – foram mandados para a forca como bandidos comuns e condenados como quadrilheiros.

Talvez tenha sido coincidência que o auge do julgamento do mensalão ocorresse a seis dias das eleições municipais. Outra possível coincidência, a edição do Jornal Nacional, que emendou a propaganda de José Serra com o noticiário sangrento sobre o tema. E que destacou, naturalmente, as peças de retórica mais ousadas. Ambas partiram dos dois “Mellos” do Supremo Tribunal Federal: o decano Celso de Mello e o sempre surpreendente Marco Aurélio Mello.

É possível que haja razões jurídicas para condenar boa parte dos réus da Ação Penal 470. Mas o dia de hoje ficará marcado como a data em que dois ministros preferiram trilhar um caminho político na suprema corte.

Marco Aurélio, em vez de simplesmente votar, resgatou e releu o discurso que fez quando de sua posse no Tribunal Superior Eleitoral em 2006. Um discurso em que comparou a era Lula a um “fosso moral”. Em seguida, incluiu a funcionária “mequetrefe” Geiza Dias da agência DNA na acusação por formação de quadrilha para que os réus fossem 13. “Um número simbólico”, lembrou Marco Aurélio, numa outra possível coincidência, também destacada no Jornal Nacional, a seis dias das eleições. Marco Aurélio falou ainda em bandidos “armados com dinheiro”, numa alusão ao passado guerrilheiro de José Dirceu e José Genoino, que enfrentaram a ditadura militar de 1964 – um regime que Marco Aurélio qualificou como um “mal necessário”.

Em seguida, comparou o Partido dos Trabalhadores, dono do número 13, à Máfia italiana, passando a bola para Celso de Mello, que fez ligações mais próximas à realidade brasileira. Para o “decano” do STF, o PT se parece mesmo com o PCC, o Primeiro Comando da Capital, e com o Comando Vermelho, grupos criminosos que assaltam e matam no Rio de Janeiro e em São Paulo.

AP470 - A vertigem...

A VERTIGEM DO SUPREMO

Os ministros do STF deliraram: não houve o desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil, viga mestra da tese do mensalão. Acompanhe a nossa demonstração

Por Raimundo Rodrigues Pereira, da revista Retrato do Brasil

A tese do mensalão como um dos maiores crimes de corrupção da história do País foi consagrada no STF. Veja-se o que diz, por exemplo, o presidente do tribunal, ministro Ayres Britto, ao condenar José Dirceu como o chefe da “quadrilha dos mensaleiros”. O mensalão foi “um projeto de poder”, “que vai muito além de um quadriênio quadruplicado”. Foi “continuísmo governamental”, “golpe, portanto”. Em outro voto, que postou no site do tribunal dias antes, Britto disse que o mensalão envolveu “crimes em quantidades enlouquecidas”, “volumosas somas de recursos financeiros e interesses conversíveis em pecúnia”, pessoas jurídicas tais como “a União Federal pela sua Câmara dos Deputados, Banco do Brasil-Visanet, Banco Central da República”.

Britto, data vênia, é um poeta. Na sua caracterização do mensalão como um crime gigante, um golpe na República, o que ele chama de Banco do Brasil-Visanet, por exemplo? É uma nova entidade financeira? Banco do Brasil a gente sabe o que é: é aquele banco estatal que os liberais queriam transformar em Banco Brasil, assim como quiseram transformar a Petrobras em Petrobrax, porque achavam ser necessário, pelo menos por palavras, nos integrarmos ao mundo financeiro globalizado.
De fato, Visanet é o nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, responsável, no Brasil, pelos cartões emitidos com a chamada bandeira Visa (hoje o nome fantasia mudou, é Cielo). Banco do Brasil-Visanet não existia, nem existe; é uma entidade criada pelo ministro Britto. E por que, como disse no voto citado, ele a colocou junto com os mais altos poderes do País - a União Federal, a Câmara dos Deputados e o Banco Central da República? Com certeza porque, como a maioria do STF, num surto anti-corrupção tão ruim quanto os piores presenciados na história política do País, viu, num suposto escândalo Banco do Brasil-Visanet, uma espécie de revelação divina. Ele seria a chave para transformar num delito de proporções inéditas o esquema de distribuição, a políticos associados e colaboradores do PT, de cerca de 50 milhões de reais tomados de empréstimo, de dois bancos mineiros, pelo partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No dia 13 de julho de 2005, menos de um mês depois de o escândalo do mensalão ter surgido, com as denúncias do deputado Roberto Jefferson, a Polícia Federal descobriu, no arquivo central do Banco Rural, em Belo Horizonte, todos os recibos da dinheirama distribuída. Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, um empresário de publicidade mineiro, principais operadores da distribuição, contaram sua história logo depois. E não só eles como mais algumas dezenas de pessoas, também envolvidas no escândalo de alguma forma, foram chamadas a depor em dezenas de inquéritos policiais e nas três comissões parlamentares de inquérito que o Congresso organizou para deslindar a trama.

Todos disseram que se tratava do famoso caixa-dois, dinheiro para o pagamento de campanhas eleitorais, passadas e futuras. Como dizemos, desde 2005, tratava-se de uma tese razoável. Por que razoável, apenas? Porque as teses, mesmo as melhores, nunca conseguem juntar todos os fatos, sempre deixam alguns de lado. A do caixa-dois é razoável. O próprio STF absolveu o publicitário Duda Mendonça, sua sócia Zilmar Fernandes e vários petistas, que receberam a maior parte do dinheiro do chamado valerioduto, porque, a despeito de proclamar que esse escândalo é o maior de todos, a corte reconheceu tratar-se, no caso das pessoas citadas, de dinheiro para campanhas eleitorais. E a tese do caixa-dois é apenas razoável, como dissemos também, porque fatos ficam de fora.

É sabido, por exemplo, que, dos 4 milhões recebidos pelo denunciante Roberto Jefferson - que jura ser o dinheiro dele caixa dois e o dos outros, mensalão - uma parte, modesta é verdade, foi para uma jovem amiga de um velho dirigente político ligado ao próprio Jefferson e falecido pouco antes. Qualquer criança relativamente esperta suporia também que os banqueiros não emprestaram dinheiro ao PT porque são altruístas e teria de se perguntar porque o partido repassou dinheiro ao PTB, PL e PP, aliados novos, e não ao PSB, PCdoB, aliados mais fiéis e antigos. Um arguto repórter da Folha de S. Paulo, num debate recente sobre o escândalo, com a participação de Retrato do Brasil, disse que dinheiro de caixa-dois é assim mesmo. E que viu deputado acusado de ter recebido o dinheiro do valerioduto vestido de modo mais sofisticado depois desses deploráveis acontecimentos.

O problema não é com a tese do caixa-dois, no entanto. Essa é a tese dos réus. No direito penal brasileiro, o réu pode até ficar completamente mudo, não precisa provar nada. É ao ministério público, encarregado da tese do mensalão, que cabe o ônus da prova. E essa tese é um horror. No fundo, é uma história para criminalizar o Partido dos Trabalhadores, para bem além dos crimes eleitorais que ele de fato cometeu no episódio. O escândalo Banco do Brasil-Visanet, que é o pilar de sustentação da tese, não tem o menor apoio nos fatos.

Essencialmente, a tese do mensalão é a de que o petista Henrique Pizzolato teria desviado de um “Fundo de Incentivo Visanet” 73,8 milhões de reais que pertenceriam ao Banco do Brasil. Seria esse o verdadeiro dinheiro do esquema armado por Delúbio e Valério sob a direção de José Dirceu. Os empréstimos dos bancos mineiros não existiriam. Seriam falsos. Teriam sido inventados pelos banqueiros, também articulados com Valério e José Dirceu, para acobertar o desvio do dinheiro público.

Essa história já existia desde a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios. Foi encampada pelos dois procuradores-gerais da República, Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, que fizeram os trabalhos da acusação. E foi transformada num sucesso de público graças aos talentos do ministro Joaquim Barbosa na armação de uma historinha ao gosto de setores de uma opinião pública sedenta de punir políticos, que em geral considerada corruptos, e ao surto anticorrupção espalhado por nossa grande mídia, que infectou e levou ao delírio a maioria do STF.
Por que a tese do mensalão é falsa? Porque o desvio dos 73,8 milhões de reais não existe. A acusação disse e o STF acreditou que uma empresa de publicidade de Valério, a DNA, recebeu esse dinheiro do Banco do Brasil (BB) para realizar trabalhos de promoção da venda de cartões de bandeira Visa do banco, ao longo dos anos 2003 e 2004. E haveria provas cabais de que esses trabalhos não foram realizados.

A acusação diz isso, há mais de seis anos, porque ela precisa de que esse desvio exista. Porque seria ele a prova de serem os 50 milhões de reais do caixa dois confessado por Delúbio e Valério inexistentes e de os empréstimos dos bancos mineiros ao esquema Valério-Delúbio serem falsos e decorrentes de uma articulação política inconfessável de Dirceu com os banqueiros. Ocorre, no entanto, que a verdade é oposto do que a acusação diz e o STF engoliu. Os autos da Ação Penal 470 contêm um mar de evidências de que a DNA de Valério realizou os trabalhos pelos quais recebeu os 73,8 milhões de reais.

No nosso site na internet, RB está apresentando, a todos os interessados em formar uma opinião mais esclarecida sobre o julgamento que está sendo concluído no STF, um endereço onde pode ser localizada a mais completa auditoria sobre o suposto escândalo BB-Visanet. Nesse local o leitor vai encontrar os 108 apensos da AP 470 com os trabalhos dessa auditoria. São documentos em formato pdf equivalentes a mais de 20.000 páginas e foram coletados por uma equipe de 20 auditores do BB num trabalho de quatro meses, de 25 de julho a 7 de dezembro de 2005 e depois estendido com interrogatórios de pessoas envolvidas e de documentos coletados ao longo de 2006.

A auditoria foi buscar provas de que o escândalo existia. Mas, ao analisar o caso, não o fez da forma interesseira e escandalosa da procuradoria geral da República e do relator da AP 470 Joaquim Barbosa, empenhados em criminalizar a ação do PT. Fez um levantamento amplo do que foram as ações do Fundo de Incentivo Visanet (FIV) desde sua criação em 2001.

Um resumo da auditoria, de 32 páginas, está nas primeiras páginas do terceiro apenso (Vol. 320). Resumindo-a mais ainda se pode dizer que:

* As regras para uso do fundo pelo BB têm duas fases: uma, de sua criação em 2001 até meados de 2004, quando o banco adotou como referencial básico para uso dos recursos o Regulamento de Constituição e Uso do FIV da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP); e outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o BB criou uma norma própria para o controle do fundo.

*Entre 2001 e 2004, a CBMP pagou, por ações do FIV programadas pelo BB, aproximadamente 150 milhões de reais – 60 milhões nos anos 2001-2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto; e 90 milhões nos anos 2003-2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. E, nos dois períodos, sempre 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.

*O BB decidiu, em 2001, por motivos fiscais, que os recursos do FIV não deveriam passar pelo banco. A CBMP pagaria diretamente os serviços através de agências contratadas pelo BB. A DNA e a Lowe Lintas foram as agências, no período 2001-2002. No final de 2002 o BB decidiu especializar suas agências e só a DNA ficou encarregada das promoções do FIV. Os originais dos documentos comprobatórios das ações ficavam na CBMP, não no BB, em todos os dois períodos.

*O fato de o BB encomendar as ações mas não ser o controlador oficial das mesmas fez com que, nos dois períodos, 2001-2002 e 2003-2004, fossem identificadas, diz a auditoria, “fragilidades no processo e falhas na condução de ações e eventos”, que motivaram mudanças nos controles de uso do fundo. Essas mudanças foram implementadas no segundo semestre de 2004, a partir de 1 de setembro.

*O relatório destaca algumas dessas “fragilidades” e “falhas”. Aqui destacaremos a do controle dos serviços, para saber se as ações de promoção tinham sido feitas de fato. Os auditores procuraram saber se existiam os comprovantes de que as ações de incentivo autorizadas pelo BB no período tinham sido de fato realizadas. **Procuraram os documentos existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os serviços e despesas de fornecedores para produzir as ações. Descobriram que, para os dois períodos 2001-2002 e 2003-2004 igualmente, somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, tinha-se quase metade dos recursos despendidos.

**Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que é, por estatuto, a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação e dos documentos originais de comprovação da realização dos serviços. A falta de documentação comprobatória foi, então, muito pequena - em proporção aos valores dos gastos autorizados, de 0,2% em 2001, 0,1% em 2002, 0,4% em 2003 e 1% em 2004.

*Dizem ainda os auditores: com as novas normas, em função das mudanças feitas nas formas de controlar o uso do dinheiro do FIV pelo BB, entre janeiro e agosto de 2005 foram executadas sete ações de incentivo, no valor de 10,9 milhões de reais e se pode constatar que, embora ainda precisassem de aprimoramento, as novas regras fixadas pelo banco estavam sendo cumpridas e os “mecanismos de controle” tinham sido aprimorados.

Ou seja: o uso dos recursos do FIV pelo BB foi feito, sob a gestão do petista Henrique Pizzolato, exatamente como tinha sido feito no governo FHC, nos dois anos anteriores à chegada de Pizzolato ao banco. E mais: foi sob a gestão de Pizzolato, em meados de 2004, que as regras para uso e controle dos recursos foram aprimoradas.

Mais reveladora ainda é análise dos apensos em busca das evidências de que os trabalhos de promoção dos cartões Visa vendidos pelo BB foram feitos. E essas evidências são torrenciais. Uma amostra dessas promoções que devem ser do conhecimento de milhares e milhares de brasileiros estão no quadro abaixo.


Em toda a documentação da auditoria existem questionamentos, são apresentados problemas. Mas de detalhes. Não é disso que se tratou no julgamento da AP 470 no entanto. A acusação que se fez e que se pretende impor através do surto do STF é outra coisa. Quer apresentar os 73,8 milhões gastos através da DNA de Valério como uma farsa montada pelo PT com o objetivo de ficar no poder, como diz o ministro Britto, “muito além de um quadriênio quadruplicado”. Essa conclusão é um delírio. As campanhas de promoção não só existiram como deram resultados espetaculares para o BB tendo em vista os objetivos pretendidos. O banco tornou-se o líder nos gastos com cartões Visa no Brasil.
Em 2003, o banco emitiu 5,3 milhões desses cartões, teve um crescimento de cerca de 35% no seu movimento de dinheiro através deles, tornou-se o número um nesse quesito entre os associados da CBMP. No final do ano, 18 de dezembro, às 14h30 horas, em São Paulo, no Itaim Bibi, rua Brigadeiro Faria Lima 3729, segundo andar, sala Platinum, de acordo com ata do encontro, os representantes dos sócios no Conselho de Administração da CBMP se reuniram e aprovaram o plano para o ano seguinte. Faturamento esperado nas transações com os cartões Visa para 2004, 156 bilhões de reais. Dinheiro do FIV, ou seja: recursos para as promoções dos cartões pelos vários bancos associados, 0,10%, ou seja 1 milésimo, desse total: 156 milhões. Parte a ser usada pelo BB, que era, dos 25 sócios da CBMP, o mais empenhado nas promoções: 35 milhões de reais.

Pode-se criticar esse esquema Visanet-BB. O governo está querendo que as taxas cobradas dos estabelecimentos comerciais pelos uso dos cartões sejam reduzidas. Na conta feita no parágrafo anterior, dos 156 bilhões de reais a serem movimentados pelos cartões em 2004, o dinheiro que iria para o esquema Visanet-BB seria de 4% a 6% desse total, ou seja, ficaria entre 6 a 10 bilhões de reais (ou seja, a verba programada para o fundo de incentivos na promoção dos cartões foi pelo menos 40 vezes menor). A procuradoria da República e o ministro Barbosa sabem de tudo isso. Se não o sabem é porque não quiseram saber: da documentação tiraram apenas detalhes, para criar o escândalo no qual estavam interessados.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Ap 470 - A saudável crítica

A saudável crítica ao STF

Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho.

Vindo para o escritório, muito cedo, passei por uma dessas kombis que vendem hamburguer e bebidas. Havia um punhado de homens consumindo cerveja. Um moralista barato pensaria estar diante de vagabundos, e os condenaria em silêncio, estendendo a condenação ao país inteiro, como sói acontecer a nossos reacionários sem pedigree. Um observador mais atento talvez descobrisse que são trabalhadores, que passaram o final de semana inteiro, em turnos sucessivos, ralando em algumas das centenas de casas de show e bares da Lapa; e que agora, com dinheiro no bolso, descontraem-se e trocam ideias. Cada um sabe o que fazer para conservar a saúde mental: uns se entopem de rivotril, outros bebem cerveja, alguns cancelam a assinatura do Globo.

Estamos sempre julgando os outros segundo nossos padrões, e por isso mesmo sempre cometendo injustiças. Um empregado de escritório, que há trinta anos acorda cedo para ir ao trabalho, de segunda a sexta, terá dificuldade para entender aquele personagem bebendo cerveja às seis horas da manhã numa kombi da Mem de Sá. No entanto, ambos são trabalhadores dignos, pagadores de impostos e cidadãos que contribuem para o nosso desenvolvimento econômico e social. Seria ridículo estabelecer uma hierarquia moral entre os dois.

A Constituição proíbe um magistrado, por exemplo, de “receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas e privadas” e “dedicar-se à atividade político-partidária”.

Já um político vive uma situação diametralmente oposta. O capítulo dedicado aos partidos políticos, na Constituição Federal, é bastante sucinto. Deixa bem claro, porém, em seu artigo primeiro, que eles têm autonomia para adotar “os critérios de escolha e regime de suas coligações eleitorais, sem vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal”. Podem receber recursos financeiros de pessoas físicas, entidades privadas, e tem direito, por lei, a um fundo partidário bancado pelo erário público.

Realidades completamente opostas, que encetam, naturalmente, formas diferentes de pensar.

Outro dia, li um artigo da Teresa Cruvinel, esta sim uma decana em democracia, porque vivenciou durante décadas, como repórter política, a realidade dos partidos, no qual ela explica aos ministros do STF, que não existe esse negócio de “entressafra” eleitoral. Os partidos caçam recursos e batalham eleitoralmente o tempo inteiro. E existe, sim, solidariedade financeira entre eles. Ayres Britto e cia, data venia, demonstraram uma grandiosa ignorância acerca da realidade dos partidos nacionais.

Aqui entra o preconceito contra quem é diferente. Pior, percebe-se uma visão rancorosa contra a democracia. Não se pode amar verdadeiramente a democracia, no entanto, sem ter uma visão benevolente sobre suas entranhas. Nem é o caso de brandir uma supostamente salvadora “reforma política”. Nenhuma reforma política irá “limpar” a democracia de sua característica fundamental: os candidatos e partidos concorrem entre si. Se há concorrência, impõem-se as leis da concorrência, que nenhum “financiamento público exclusivo” irá resolver. Ganha a eleição quem persuadir o eleitor, e para isso concorrerá a qualidade da divulgação. Seja com dinheiro público ou privado, essa qualidade deve ser paga, porque qualquer coisa que envolva mão-de-obra e trabalho, envolve dinheiro.

Sou favorável ao financiamento público de campanha, mas sem proibir o privado. Porque é justamente a proibição que leva ao crime. O pecado nasce da lei, já ensinava São Paulo.

Grande ingenuidade, por sua vez, e os fascismos nasceram, em boa parte, de intenções ingênuas, querer separar totalmente dinheiro e campanha política. Anunciar que “não ganho um real, faço campanha por ideal” é uma verdade muito relativa. Trabalho não existe sem dinheiro, ou sem algum retorno, nem que seja intelectual, ou na forma de benefícios futuros (como defender um candidato que apóia expansão da universidade e, anos depois, ser beneficiado por esta expansão). Seria até engraçado se depois de criminalizar a política e a democracia, houvesse uma campanha (estimulada por nossos mais brutais capitalistas) para criminalizar os benefícios da política. Até um escravo trabalha em troca de alguma coisa, só que na forma de alimentação e moradia. No caso, ele não é livre, e essa é a diferença. Se um jovem trabalha numa campanha sem ganhar nada, é porque seu pai está bancando; ou ele mesmo o faz, com vistas a um ganho futuro, para ele ou para o segmento social do qual faz parte.

Enfim, vivemos um clima curioso de perseguição à democracia, em todos os sentidos. Curioso porque ocorrem ao mesmo tempo em que os valores democráticos são exaltados como se fossem princípios religiosos. Só que democracia não é religião. Tampouco é uma filosofia. Na religião, persegue-se um ideal de fé. Na filosofia, um ideal de verdade. Na política, persegue-se o poder. O valor da democracia, a sua virtude, o que a torna supostamente superior a outros regimes, reside na fonte do poder, conforme consta no Artigo primeiro da Carta Magna:

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Não se pode criminalizar o poder. Ele é o insumo básico da política. É pelo poder que se luta. Operários, camponeses, industriais, professores, bancários, empreiteiros, todos querem um naco. A pluralidade política de um país como o Brasil estará sempre assegurada em função dos interesses diversos. Os ministros do STF não podem criminalizar o que é a essência da política: a luta para alcançar o poder e, quando alcançado, mantê-lo. Alguns filósofos, como Schopenhauer, Nietzsche e Espinoza, consideravam inclusive que esta luta é a essência da própria vida, o que eu acho que faz muito sentido.

Toda coisa almeja – na medida em que isso está em seu poder – permanecer em si mesma, diz Espinoza.

Alguns companheiros instruídos e inteligentes têm zombado das fortes críticas que emergem na blogosfera acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Penal 470. Deveriam, contudo, agradecer, porque estas críticas fortalecem a nossa democracia. Cito novamente o artigo de Teresa Cruvinel, no qual ela menciona o célebre penalista Nelson Hungria: “o Supremo tem apenas o privilégio de errar por último”. Frase bonita, simples e filosófica. Tão diferente do que li hoje na coluna de Paulo Guedes, no Globo, que termina dizendo que os réus petistas foram condenados porque “ofenderam aos deuses do Supremo, e por eles serão punidos”.

Isso é uma brincadeira de péssimo gosto! Não se pode atribuir qualidades divinas, nem como figura de linguagem, a uma entidade republicana.

O fato de haver críticas à atuação do STF é sinal de vitalidade democrática. Deve ser estimulado, e na verdade o que vemos na grande imprensa é um enorme desequilíbrio, porque as opiniões críticas ficam num longínquo segundo plano, enquanto os elogios se tornaram ridiculamente laudatórios. Joaquim Barbosa agora é desenhado por Chico Caruso com uma coroa na cabeça, e o Gois já divulgou o site em que se defende a sua candidatura para a presidência da república em 2014!

A democracia é um regime que comporta alguns riscos e, para ser autêntica e saudável, precisa de cidadãos vigilantes. Toda instituição republicana tem de ser exposta ao contraditório. Neste sentido, e já escrevi bastante sobre isso, acho que os governos petistas acabaram se beneficiando da crítica ferrenha da grande mídia. No entanto, eles se beneficiaram porque a grande mídia, por sua vez, também sofreu críticas, por parte da blogosfera. A mesma coisa vale para o STF. Ele precisa ser criticado, para seu próprio bem. Porque é lamentável que haja desconfiança, em setores importantes da sociedade, de que seus membros se curvaram à pressão política de grupos midiáticos altamente partidarizados.

Não se trata de defender a impunidade. Aí reside, a meu ver, a injustiça daqueles que, achando-se muito descolados, desqualificam os internautas que criticam o STF. É claro que não! Prendam os corruptos, inclusive do PT. Sobretudo do PT! O que tem gerado acerbos protestos não é isso, e sim o estranho discurso dos eminentes juízes, com proselitismos absurdos e delirantes sobre a prática política, dos quais abusam para preencher as lacunas processuais. Ayres Britto, presidente do STF, chegou ao cúmulo de condenar o presidencialismo de coalizão! Me desculpem, mas isso é positivamente ridículo. A Constituição é muito clara: é vetado aos juízes dedicarem-se à atividade político-partidária. E mesmo se não o fossem, criticar levianamente, ou pior, criminalizar, um dos modelos mais difundidos e mais adequados a democracias complexas e de grande porte como o Brasil, é mais do que ignorância. Com todo respeito, excelentíssimos, é cretinice!

O pior é que esses discursos têm unido oposição e sectários num só bloco. Há muita gente que ainda pensa política de maneira maniqueísta, e daí voltamos para o debate propriamente político, no qual o STF, com muita infelicidade, voltou a interferir. Só o meu partido e a minha ideologia são puros, corretos e bons. Esse é o tipo de sectarismo que o STF tem defendido, de maneira inconstitucional. É totalmente contraditório elogiar os feitos do governo Lula e omitir que eles só foram possíveis justamente porque foram realizadas alianças políticas. O PT deixou de ser um partido sectário e fez alianças com outras legendas. A nossa Constituição preza o pluralismo político como um dos seus princípios fundamentais. O que isso quer dizer? Que devemos entender a diversidade ideológica como um fator saudável da nossa democracia. Tanto o cidadão como o partido devem perseguir um conjunto de princípios, mas sem discriminar os que pensam diferente.

Durkhein causou polêmica ao afirmar que o crime é necessário à sociedade, porque, não existissem os grandes crimes, como assassinato e roubo, qualquer tapinha inocente no braço de um colega seria considerado crime capital. Da mesma forma, se todo mundo fosse de esquerda, viveríamos um ambiente radicalizado, onde, sei lá, emprestar 10 reais pra um amigo seria um crime. A esquerda precisa da direita para existir, e vice-versa, porque todo o ser apenas existe refletido em seu contrário, conforme ensina Hegel. Não existisse direita, não haveria esquerda.

Os contrapontos ideológicos integram não apenas a democracia, mas a própria psique humana. Há uma dialética entre liberdade e igualdade, assim como há entre direita e esquerda. Uma ideologia não se aprimora destruindo a outra, mas incorporando-a e formando uma síntese. A utopia da modernidade não é uma sociedade esquerdista, e sim uma sociedade onde os princípios básicos do humanismo, solidariedade, democracia e liberdade, estarão enraizados de maneira definitiva e profunda num regime político de alcance universal.

A crítica ao STF é essencial, todavia, porque acabamos de testemunhar um golpe em Honduras protagonizado justamente pela suprema corte. No Paraguai, o judiciário chancelou, numa decisão instantânea, um golpe parlamentar. A América Latina tem o costume de experimentar “ondas” políticas. Se a onda é o neoliberalismo, então todos os países, da Patagônia ao Rio Grande, elegem partidos neoliberais. Se a moda é eleger presidentes de esquerda, de novo todo mundo caminha junto. Houve um tempo em que os militares derrubaram presidentes em toda a região. É mais que natural que, após dois casos em que as cortes supremas chancelaram deposições relâmpagos de presidentes eleitos, haja um pouco de paranóia entre os democratas brasileiros!

domingo, 14 de outubro de 2012

AP 470 - A mesada e o mensalão

A mesada e o mensalão

Janio de Freitas, 14/10/12

Passados sete anos, ainda não se sabe quanto houve de mentira na denúncia inicial de Roberto Jefferson 


A mentira foi a geradora de todas as verdades, meias verdades, indícios desprezados e indícios manipulados que deram a dimensão do escândalo e o espírito do julgamento do "mensalão".

Por ora, o paradoxo irônico está soterrado no clima odiento que, das manifestações antidemocráticas de jornalistas e leitores às agressões verbais no Supremo, restringe a busca de elucidação de todo o episódio. Pode ser que mais tarde contribua para compreenderem o nosso tempo de brasileiros.

Estava lá, na primeira página de celebração das condenações de José Dirceu e José Genoino, a reprodução da primeira página da Folha em 6 de junho de 2005. Primeiro passo para a recente manchete editorializada -CULPADOS-, a estonteante denúncia colhida pela jornalista Renata Lo Prete: "PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares, diz Jefferson". O leitor não tinha ideia de que Jefferson era esse.

Era mentira a mesada de R$ 30 mil. Nem indício apareceu desse pagamento de montante regular e mensal, apesar da minúcia com que as investigações o procuraram. Passados sete anos, ainda não se sabe quanto houve de mentira, além da mensalidade, na denúncia inicial de Roberto Jefferson. A tão citada conversa com Lula a respeito de mesada é um exemplo da ficção continuada.

A mentira central deu origem ao nome -mensalão- que não se adapta à trama hoje conhecida. Torna-se, por isso, ele também uma mentira. E, como apropriado, o deputado Miro Teixeira diz ser mentira a sua autoria do batismo, cujo jeito lembra mesmo o do próprio Jefferson.

Nada leva, porém, à velha ideia de alguém que atirou no que viu e acertou no que não viu. A mentira da denúncia de Roberto Jefferson era de quem sabia haver dinheiro, mas dinheiro grosso: ele o recebera. E não há sinal de que o tenha repassado ao PTB, em nome do qual colheu mais de R$ 4 milhões e, admitiria mais tarde, esperava ainda R$ 15 milhões. A mentira de modestos R$ 30 mil era prudente e útil.

Prudente por acobertar, eventualmente até para companheiros petebistas, a correnteza dos milhões que também o inundava. E útil por bastar para a vingança ou chantagem pela falta dos R$ 15 milhões, paralela à demissão de gente sua por corrupção no Correio. Como diria mais tarde, Jefferson supôs que o flagrante de corrupção, exibido nas TVs, fosse coisa de José Dirceu para atingi-lo. O que soa como outra mentira, porque presidia o PTB e o governo não hostilizaria um partido necessário à sua base na Câmara.

Da mentira vieram as verdades, as meias verdades e nem isso. Mas a condenação de Roberto Jefferson, por corrupção passiva, ainda não é a verdade que aparenta. Nem é provável que venha a sê-lo. 

MAIS DEDUÇÃO

Em sua mais recente dedução para voto condenatório, o presidente do Supremo, Ayres Britto, deu como certo que as ações em julgamento visaram a "continuísmo governamental.

Golpe, portanto, nesse conteúdo da democracia que é o republicanismo, que postula renovação dos quadros de dirigentes".

Desde sua criação e no mundo todo, alcançar o poder, e, se alcançado, nele permanecer o máximo possível, é a razão de ser dos partidos políticos. Os que não se organizem por tal razão, são contrafações, fraudes admitidas, não são partidos políticos.

Sergio Motta, que esteve politicamente para Fernando Henrique como José Dirceu para Lula, informou ao país que o projeto do PSDB era continuar no poder por 20 anos.

Não há por que supor que, nesse caso, o ministro Ayres Britto tenha deduzido haver golpe ou plano golpista. Nem mesmo depois que o projeto se iniciou com a compra de deputados para aprovar a reeleição.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

AP 470 - capa da folha

José Dirceu e a capa da Folha  

Altamiro Borges, 11/10/12

Os jornalões e os "calunistas" das emissoras de televisão, em especial da Globo, não conseguiram conter a excitação ontem com o resultado do julgamento midiático no STF, que confirmou a condenação dos líderes petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. O mais escancarado, porém, foi o jornal da famiglia Frias, a Folha - o mesmo que apoiou o golpe militar de 1964, cedeu as suas peruas para o transporte de presos políticos e se aliou com o setor "linha dura" dos generais da ditadura. É como se a Folha tivesse se vingado das forças de esquerda, principalmente do ex-líder estudantil José Dirceu.
  
Até o jornalista Aberto Dines, do Observatório da Imprensa, ficou chocado com a postura raivosa da Folha - que nada tem de jornalística. "Uma capa histórica na edição de quarta-feira da Folha de S.Paulo. Numa única edição, aquele que pretende ser 'um jornal a serviço do Brasil' despencou no abismo da paranoia, da irresponsabilidade e prestou um enorme desserviço à formação cívica do leitor", afirma o veterano profissional da área, que não pode ser acusado de inimigo da mídia golpista. Reproduzo abaixo o seu artigo:
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Folha & Mensalão

O dia em que o jornalão virou tabloide

Por Alberto Dines em 11/10/2012 na edição 715

Uma capa histórica na edição de quarta-feira (10/10) da Folha de S.Paulo. Numa única edição, aquele que pretende ser “um jornal a serviço do Brasil” despencou no abismo da paranoia, da irresponsabilidade e prestou um enorme desserviço à formação cívica do leitor.

A condenação pelo Supremo Tribunal Federal de José Dirceu e da antiga cúpula do PT levou os responsáveis pela edição a perderem o senso de medida e os compromissos dos jornalistas em preservar sua dignidade e a dos personagens que circulam em suas páginas.

Puro hooliganismo: o jornal vilipendiou uma tragédia política, acirrou rancores, transformou um julgamento exemplar num rififi futebolístico, pisoteou os padrões de decência do nosso jornalismo, inclusive a célebre entrevista de Roberto Jefferson à repórter Renata Lo Prette – hoje na GloboNews – que marcou o início do escândalo do mensalão.

Tarefa contínua

Quando Richard Nixon e Fernando Collor foram obrigados a renunciar para não serem escorraçados da Presidência, os jornais que os derrubaram comportaram-se com mais compostura e respeito. Não se bate no adversário caído, isso sabem até os palhaços das artes marciais que a Folha tanto incentiva.

O rosto de José Dirceu deformado pela luz sobre um fundo escuro, tétrico, esticado para ocupar toda a largura da primeira página, acrescido de um título em letras garrafais (“Culpados”), é o escracho em estado puro, sensacionalismo, versão tupiniquim do tabloidismo murdoquiano e do canibalismo político.

A foto havia sido feita três dias antes, já fora publicada, não acrescentava qualquer informação, não escondia o desejo de avacalhar.

A exibição de perversidade da Folha contrasta vivamente com a capa sutil e inteligente do Globo sugerindo o início efetivo da primavera brasiliense: enorme arco-íris sobre a Praça dos Três Poderes, com a estátua da Justiça em primeiro plano.

O Estado de S.Paulo foi fleumático, solene, como convém a essas circunstâncias: título breve (“Supremo condena Dirceu”), foto também de arquivo, mas sem deformações.

Jornalismo é um exercício contínuo de decência – a Folha deveria debruçar-se sobre este tópico na próxima edição do seu Manual de Redação.

AP 470 - o julgamento

O julgamento que não terminará

Tarso Genro 12/10/12 na Carta Maior




Em alguns momentos da história o Direito é testado a respeito da sua verdadeira força constitutiva na vida das pessoas, de um grupo social determinado ou de uma nação. Compartilhei com o Supremo alguns destes debates, na condição de ministro da Justiça e lembro-me de dois deles, que foram lapidares. Testaram os limites do projeto democrático em curso que, como se sabe, não partiu de uma ruptura do regime militar, mas de um acordo “pelo alto”, legitimado pelo processo constituinte, que consagrou as liberdades políticas e produziu a vigorosa Constituição de 88.

O “teste” da importância da Constituição na vida de um povo é tanto político, como jurídico. O teste mais forte, no entanto, sempre faz o “político” e o “jurídico” convergirem para o que grandes juristas designam como “força normativa da Constituição”. Esta força normativa é a síntese entre a “Constituição real” (pela qual o direito realiza-se orientado não somente pela lei, mas também pela força do dinheiro, da cultura, da possibilidade que os grupos e classes tem de influenciar os tribunais), e a “Constituição formal”, ou seja, com aquelas influências limitadas no disposto como direito positivo, declarado pelo poder constituinte.

A demarcação da “Raposa Serra do Sol” e o debate que ficou conhecido como “revisão da Lei da Anistia” (a mídia propagou errônea e deliberadamente que pretendíamos a “revisão” da Lei e não a sua “interpretação”), foram dois destes casos. Ambos poderiam ser decididos livre e coerentemente, na sistemática legal atual, para qualquer lado: poder-se-ia decidir que o território era contínuo e assim beneficiar as comunidades indígenas (que foi a decisão do STF), ou dizer que o território indígena deveria ser descontínuo e segmentado e, desta forma, beneficiar-se-ia os que ali se localizavam de boa fé, cometendo crimes ambientais e ocupando terras da União.

Tanto no primeiro como no segundo caso, dois valores se opunham. No caso “Raposa” o direito imemorial dos indígenas, de um lado e, de outro, a posse de boa fé, das famílias instaladas para produzir para o mercado e para a sua subsistência. No segundo caso (“Anistia para os torturadores”), dois valores também estavam claramente em oposição: o respeito pleno, integral e imprescritível aos direitos humanos, por qualquer estado em qualquer circunstância, de um lado e, de outro, um suposto contrato político na transição. Este contrato, segundo o caminho então tomado pelo Supremo, permitira - “legalmente” - que os promotores ou, no mínimo, os coniventes com as torturas, pudessem “contratar” a anistia para os que torturaram e mataram nos cárceres do estado. E o fizeram contra custodiados indefesos, fora do cenário da luta revolucionária, na qual estes já estavam militarmente derrotados.

A dupla e às vezes múltipla possibilidade de interpretação de um dispositivo constitucional gera oportunidades de escolha do intérprete, a partir de valores que estão pré-supostos na sua história individual e social. Nos casos de grande repercussão sobre os “fundamentos do estado de direito” (igualdade perante a lei e inviolabilidade dos direitos), estas escolhas são sempre de natureza política e balizadas pelas grandes questões históricas que o país enfrenta. Vejamos um caso interessante e muito apropriado, para se refletir sobre o que está acontecendo no país com o chamado julgamento do “mensalão”.

É um caso de direitos civis, famoso na jurisprudência da Suprema Corte Americana (109 U.S. – 1883), no qual a interpretação da Lei dos Direitos Civis de 1875 - que outorgara o direito dos negros americanos usarem hospedarias, teatros, transportes públicos e outros espaços públicos e privados - opunha dois valores bem nítidos: o sistema federal, em construção dolorosa depois de uma sangrenta guerra civil, de um lado, e, de outro, a dignidade da pessoa humana sustentada pela Lei dos Direitos Civis. Principalmente no sul do país, com a reação dos remanescentes racistas e escravagistas - cuja força política persistiu até a década de 60 do século XX - vários estados se negavam à aplicação da Lei dos Direitos Civis e se amparavam no “pacto federativo”, cujas cláusulas permitiriam a independência “interpretativa” sobre o alcance das referidas normas de proteção dos direitos civis.

Nesta atmosfera tensa, a Suprema Corte sentenciou que a 14ª. Emenda não havia dado um mandato claro ao Congresso para “proteger” os direitos civis, “senão o poder para corrigir os abusos dos Estados”. Esta decisão, que diferencia “proteção”, de “correção de abusos”, no caso concreto - das polícias, dos brancos e dos governos - contra os negros, mostra a brutal distinção na aplicação da lei e da Constituição, que pode se originar dos valores que orientam a interpretação de um Tribunal.

O Juiz Bradley - relator do processo - escolheu a visão da processualidade que, segundo ele, estaria contida na 14ª Emenda, pois estava convicto que deveria ocorrer “algum estágio” na transição do ser humano, de ‘coisa’ (o negro), para que todos chegassem à condição do ‘ser humano’ (branco), estatuto reservado para parte da população naqueles estados. O Juiz Harlan, que divergiu, denunciou a trama interpretativa: “Não posso resistir à conclusão que a substância e o espírito da recente Emenda à Constituição tem sido sacrificados pela crítica verbal, hábil e engenhosa”.

O valor “federalismo”, naquele caso concreto, foi escolhido para fundamentar uma decisão racista, “atenuando” os efeitos da 14ª Emenda, que respaldara abertamente os direitos civis e sintetizara uma “revolução democrática”, em curso na nação americana.

O Ministro Celso Mello (Relator da Extradição 633-9, República Popular da China - Pleno - DJ 16.02.01-unânime) já passou por situação análoga, na qual negou a extradição de cidadão chinês, acusado de crimes graves naquele país, porque ali os Tribunais “não levam em consideração os argumentos da defesa, nem consagram o princípio da presunção da inocência”. Neste julgamento o Ministro Celso Mello optou claramente - na escolha entre valores que se apresentam em cada processo concreto - por um valor fundante do Direito Penal, nas sociedades democráticas: “a presunção da inocência”. Ou seja, entre o valor “aplicação correta e formal do direito interno chinês”, de um lado (que seria uma das possibilidades para dar legitimidade à extradição) e, de outro lado, o valor “princípio da presunção da inocência” (que serviria para negar a extradição) o princípio da “presunção da inocência” teve o peso decisivo.

O Ministro Lewandowsky, que escolheu o princípio da presunção da inocência e o fundamentou, nos casos de Genoino e Dirceu, tem sido hostilizado, não só na imprensa como em alguns lugares públicos. O ministro Joaquim Barbosa, guindado à condição de herói nacional pela revista Veja, tem sido aplaudido e incensado pela imprensa em lugares públicos. Conhecendo e respeitando a integridade de ambos, imagino que mesmo em situações - que são meramente conjunturais - diferentes, devem estar se perguntando porquê tudo isso. Ambos cumpriram os seus deveres como Ministros da Corte mais alta da República, mas recebem reações diferenças, na sociedade e na imprensa. Não pende, sobre nenhum dos dois, qualquer mancha moral e ninguém duvida dos seus conhecimentos e da sua capacidade como juristas, mas eles tem um tratamento jornalístico e social desigual. Por quê?

Quero opinar um pouco sobre isso, porque creio estarmos num momento importante da vida democrática nacional. E a minha opinião não é sobre fatos e condutas, que determinaram o processo judicial em julgamento, porque, a não ser a respeito de Genoino, de quem fui amigo pessoal por décadas (poderia depor a respeito da sua integridade moral e sua honestidade e sobre a convicção de que não teve nenhuma conduta dolosa), não convivi, não conheço a personalidade, a vida pessoal e mesmo política de maneira suficiente, de nenhum dos outros réus. Sobre José Dirceu e os demais réus, não posso ter juízo “jurídico” sobre os fatos que ensejaram a ação penal, mas posso afirmar, também sobre José Dirceu -que é a personalidade mais forte do julgamento - que certamente foi condenado sem obediência ao princípio da presunção da inocência.

O processo judicial em curso, pela massiva campanha condenatória que precedeu o julgamento, tornou-se um processo político e altamente politizado. Foi anulado dramaticamente o significado pedagógico e moral, que ele poderia ter para o futuro democrático do país, se o princípio da presunção da inocência fosse observado e o espírito de linchamento não tivesse sido disseminado, como foi. Não se trata, em conseqüência, de “defender” - como foi inculcado no senso comum - Genoino e Dirceu. Ou de atacar, tal ou qual grupo de comunicação, ou mesmo de discutir os argumentos do Procurador Geral ou da defesa dos réus, por dentro do processo: o verdadeiro julgamento foi no paralelo político.

Trata-se, portanto, de avaliar como chegamos - em plena democracia política - a uma situação que lembra a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, na era stalinista: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov.” Lewandowky e Joaquim Barbosa estão sendo eventualmente recebidos de maneira diferente, nos lugares que freqüentam, pelos mesmo motivos: os réus já tinham sido julgados. Um, pelas suas convicções, disse que a sentença midiática estava -vejam bem- apenas parcialmente errada. Outro, pelas suas convicções, disse que ela estava totalmente certa. O julgamento judicial foi um julgamento político e a síntese, que resultou do embate entre valores pré-supostos na interpretação, foi doce para a direita política irracional que dominou a mídia, mas amarga para a esquerda que vem governando o país dentro da democracia.

O embate de valores, que ocorreu neste julgamento, é exemplar para a reforma democrática que nos desafia de imediato, foi o seguinte: de um lado o “princípio da presunção da inocência” e, de outro, o controle “unilateral da formação da opinião”, que, ao não conseguir provas suficientes para condenação, enquadrou o senso comum e o próprio Supremo, na certeza de que o julgamento é feito antes e “por fora” dos Tribunais. E, assim, serão incensados os que aceitarem este controle e serão amaldiçoados os que se rebelarem contra ele.

Talvez este julgamento tenha uma virtude: sirva para coesionar um campo democrático amplo, para atacar a principal chaga da democracia brasileira, que é o sistema político atual, fundado no financiamento privado das campanhas e nas alianças regionais sem princípio. Se não atentarmos para isso, rapidamente, merecemos este julgamento, no qual a presunção da inocência foi sacrificada no altar da “teoria do domínio funcional dos fatos”.

Na verdade, como o julgamento foi principalmente político, embora dentro de todos os parâmetros da legalidade constitucional, ele não terminará em breve. Vai continuar. E o principal erro que poderemos cometer será utilizar esta jurisprudência contra os adversários da revolução democrática em curso, desejando e propagando que eles devem ser condenados sem provas, com linchamentos prévios pela mídia. Aliás, isto é impossível, porque eles é que tem o domínio funcional dos fatos através da grande mídia.